REVINCLUSO - Revista Inclusão & Sociedade                                 ISSN 2764-4537

DOSSIÊ TEMÁTICO: “FACES EM QUESTÃO: O NÃO-MANUAL NAS LÍNGUAS DE SINAIS”

THEMATIC DOSSIER: "FACES IN QUESTION: THE NON-MANUAL IN SIGN LANGUAGES"

DOSSIER TEMÁTICO "ROSTROS EN CUESTIÓN: LO NO MANUAL EN LAS LENGUAS DE SIGNOS"

Kate Mamhy Oliveira Kumada[1], Emely Pujólli da Silva[2], Priscila Benitez[3]

O dossiê temático "Faces em questão: o não-manual nas línguas de sinais", publicado no volume 3, de 2023, da Revista Inclusão & Sociedade (Revincluso), foi organizado pelas Profa Dra Kate Kumada, Profa Dra Emely Silva e com contribuições pontuais da Profa Dra Priscila Benitez com o objetivo de compilar estudos que contribuem com o avanço e solidificação das pesquisas sobre marcadores não-manuais em Línguas de Sinais. Certamente, o conhecimento sólido da formação acadêmica e profissional das professoras doutoras Kate e Emely merecem destaque na produção do referido dossiê.

Nos últimos anos, o papel das expressões faciais e corporais tem sido objeto de investigação em línguas orais que reconhecem sua função linguística e social. Contudo, sabe-se que além de transmitir emoções e o estado afetivo, no bojo dos estudos surdos, o corpo e a face já são reconhecidos como elementos que assumem função gramatical inerente às línguas de sinais.

Diante do exposto, marcadores/gestos/expressões não-manuais (como também são referenciados) têm despertado cada vez mais o interesse de autores pela análise e descrição desse parâmetro. Esse cenário motivou a presente proposta de dossiê temático, sob o qual foram reunidos autores nacionais e internacionais que têm desenvolvido estudos concernentes à temática.

A Revista Inclusão & Sociedade - Revincluso, escolhida para divulgação desses estudos, consiste em um periódico brasileiro interdisciplinar vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão da Inovação, da Universidade Federal do ABC (UFABC). Este número especial contou com  artigos e entrevistas concernentes à avanços, desafios e perspectivas em contextos dos marcadores não-manuais próprios nas línguas de sinais.

As duas entrevistas, conduzidas pela Profa Dra Emely Pujolli da Silva trazem a visão de dois pesquisadores pioneiros e influentes na pesquisa de marcadores não-manuais. A primeira entrevista foi realizada com o Prof. Dr. Roland Pfau, da University of Amsterdam, da Holanda, em que o pesquisador compartilha reflexões sobre marcadores não-manuais em diversas línguas de sinais destacando sua aplicação em tecnologia e conexão com as comunidades surdas, bem como contextos acadêmicos, linguísticos e analíticos. Pfau também enfatiza a importância da relação entre línguas de sinais e corpora linguísticos na análise das interações entre contextos de expressão de negação, ações, estruturas linguísticas e evolução cultural. Ainda, abordamos a dialética das representações e grupos de interações de pesquisa como essenciais para construir um mundo de relações dinâmicas, rompendo com a ideia de que estudos de línguas de sinais agem como entidades estáticas, permitindo a transformação por meio de pesquisas em diferentes línguas de sinais.

A segunda entrevista foi com a Profa. Dra. Bencie Woll, da University College London, da Inglaterra, renomada linguista especializada em línguas de sinais, onde foi discutido sua pesquisa sobre o uso de ações da boca e a iconicidade de marcadores não manuais. Sua carreira dedicada à linguística, combinada com seu compromisso com a comunidade surda, a torna uma figura relevante nessa área. A pesquisa de Woll avançou a compreensão sobre o funcionamento das línguas de sinais, com aplicações práticas em tecnologia de reconhecimento e materiais educacionais. Sua inovação contínua destaca-se, e a entrevista oferece uma discussão do presente e das perspectivas futuras nos estudos de marcadores não manuais segundo a visão de Woll.

Dentre os artigos temos quatro artigos, sendo duas publicações brasileiras e duas publicações internacionais (uma de Portugal e outra do Reino Unido).

O artigo intitulado "The processing of facial actions in deaf children with autism who use British Sign Language (BSL)" foi produzido por autores da University College, do Reino Unido, sendo Tanya Denmark, Ruth Campbell e Joanna Atkinson do Deafness, Cognition and Language Research Centre (DCAL) e John Swettenham, do Psychology and Language Sciences (PALS). O estudo realiza um comparativo entre pessoas com transtorno do espectro do autismo (TEA) surdas e ouvintes com TEA. A motivação dessa análise se faz diante do cruzamento da informação de que muitas pessoas com TEA apresentam dificuldade na produção e compreensão de expressões faciais e de que essas mesmas expressões faciais são reconhecidamente importantes para uma eficiente comunicação de surdos utentes da língua de sinais, problematizando-se assim a condição de pessoas surdas com TEA. Seus resultados demonstram vantagem do grupo de pessoas surdas com TEA, pois esses preservam a compreensão de funções afetivas (como nojo) e gramaticais (como de pergunta e negação) dos marcadores não manuais da Libras, de forma mais eficiente que crianças e jovens ouvintes com TEA. Apesar de indicarem a importância de mais pesquisas, esse resultado já evidencia que a condição do TEA pode não afetar o desenvolvimento da comunicação em língua de sinais.

Por sua vez, a produção intitulada "Breves considerações sobre a expressão não manual na língua gestual/de sinais portuguesa", Isabel Correia e Rafaela Cota Silva, ambas do Instituto Politécnico de Coimbra, em Portugal. Além de problematizarem o conceito de "língua gestual portuguesa (LGP)" e "língua de sinais portuguesa (LSP)", como um debate recente e ainda sem consenso entre estudiosos e comunidades surdas, o texto aborda as expressões não manuais da LGP/LSP sob o viés da descrição e análise gramatical desse sistema linguístico. Assim, as autoras destacam que as expressões não manuais podem ser incorporadas desde representações cinésicas, movimentos e expressões gestuais que remetem ao objeto real e assumem uma característica paralinguística, embora essencial para a compreensão da sinalização. Também discutem o peso emocional das expressões faciais e a função de marcadores suprassegmentais (envolvendo articuladores como as sobrancelhas, as pestanas, a face e os lábios) na determinação do tipo de frase (por ex. sentença interrogativa ou exclamativa) e prosódica (por ex. entonação com ritmo e ênfase). Outro tópico abordado no artigo de Correia e Silva diz respeito às manifestações de mouthing e mouth gestures, discutindo a labialização em alguns sinais como um fenômeno presente em várias línguas de sinais, podendo ser resultado de anos de tradição em uma abordagem educacional oralista, o que reflete também fenômenos de mouthing parcial, ou seja, quando parte da vocalização é representada pela boca durante a sinalização. Assim, a presença das expressões não manuais é analisada pelas autoras a partir de suas manifestações em verbos, pronomes e determinantes possessivos, negações, entre outros.

O artigo desenvolvido por Letícia Kaori Hanada, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), contribui com a literatura a partir da pesquisa sobre "Codificação automatizada de marcadores não-manuais: análise de corpora de línguas de sinais utilizando FaceReader)". Em sua investigação, a autora busca demonstrar o potencial do FaceReader para codificar expressões faciais e movimentos da cabeça realizados em línguas de sinais, pautando-se a partir de uma fundamentação teórica interdisciplinar (linguística, psicologia, computação, etc) e no uso de Facial Action Coding System (FACS). De acordo com Hanada (2023), o FaceReader é um programa utilizado para detectar e classificar as expressões faciais conforme as emoções, tais como, felicidade, tristeza, raiva, surpresa, nojo, medo e neutralidade, capaz de auxiliar na ampliação de estudos sobre os marcadores não manuais em línguas de sinais. O artigo apresenta as vantagens do FaceReader, bem como as suas limitações atuais, seja no âmbito do custo elevado ou no tocante ao reconhecimento diante de movimentos de tronco vinculados à cabeça e de participantes com barba ou óculos, por exemplo.

E, por fim, o artigo "Construção da Silfa: Corpus de expressão facial em língua de sinais" foi produzido por Emely Pujólli da Silva e Paula D. Paro Costa da Unicamp e Kate Kumada e Priscila Benitez da UFABC. O trabalho identifica a escassez de registros de vídeo bem-rotulados na análise da Língua de Sinais, essenciais para estudos, tradução e tecnologias automatizadas. Assim, introduzimos o corpus de dados de vídeos de ação facial em língua de sinais (Silfa), detalhando sua concepção, preparação e análise. O Silfa contém o registro de oito jovens adultos surdos em vídeos, sinalizando sentenças para elicitar expressões espontâneas. Os vídeos foram manualmente anotados quanto às expressões faciais, presença/ausência delas e transcrição em português. Além disso, o artigo destaca a importância das expressões faciais na Língua de Sinais, dando protagonismo ao Surdo e mapeando fluxos dos marcadores não manuais em vídeos. O corpus gerado é o primeiro conjunto de dados brasileiro de Língua de Sinais com foco em expressões faciais e fornecendo frases traduzidas e anotações das unidades de ação facial nos vídeos.

Nesta edição especial, testemunhamos o notável avanço e consolidação das pesquisas sobre marcadores não-manuais em Línguas de Sinais, destacando o impacto significativo que esses estudos têm na compreensão e promoção da riqueza linguística das comunidades surdas. Os artigos aqui reunidos não apenas evidenciam a dedicação incansável de pesquisadores em explorar as nuances das expressões faciais, movimentos corporais e outras manifestações não-manuais, mas também ressaltam a importância de integrar esses elementos no desenvolvimento de tecnologias e materiais educacionais mais inclusivos. À medida que avançamos para o futuro, esta edição especial serve como um marco sólido, celebrando conquistas passadas e inspirando novas investigações que continuarão a desvendar os intrincados laços entre marcadores não-manuais e a riqueza cultural e linguística das Línguas de Sinais. Que este conhecimento impulsionado por paixão e dedicação continue a iluminar os caminhos da pesquisa, promovendo uma compreensão mais profunda e apreciativa das línguas gestuais e da diversidade surda.

As editoras deste dossiê têm o prazer de oferecer este volume que reflete uma dinâmica interdisciplinar sobre o presente estado das pesquisa em marcadores não-manuais das línguas de sinais, seus desafios e de construção de conhecimento apoiada na inclusão, em uma perspectiva de pesquisas brasileiras e estrangeiras, e no trabalho em equipe entre estudiosos das diversas áreas das ciências linguísticas e correlacionadas.

Revista Inclusão e Sociedade, v.3, n.1, 2023        


[1] Docente da Universidade Federal do ABC (UFABC), Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: kate.kumada@ufabc.edu.br

[2] Pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no Recod.ai, Doutora em Engenharia Elétrica com ênfase em Engenharia de Computação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: emelyps@unicamp.br 

[3] Docente da Universidade Federal do ABC (UFABC). Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos. E-mail: benitez.priscila@gmail.com