POLÍTICA NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO NO BRASIL:
da gratuidade
restrita à acessibilidade universal
NATIONAL TEXTBOOK POLICY IN BRAZIL:
from restricted free access to universal
accessibility
POLÍTICA NACIONAL DE LIBROS
DE TEXTO EN BRASIL:
del libre acceso restringido
a la accesibilidad universal
Valci Melo[1]
Resumo: O estudo analisa o percurso histórico da política
nacional do livro didático no Brasil a partir dos conceitos de acessibilidade,
desenho universal para a aprendizagem e inclusão escolar. Para tal, faz-se uma
revisão bibliográfica e investigação documental à luz do materialismo
histórico-dialético, destacando-se as conquistas, contradições e desafios dessa
importante política pública educacional. Ao longo do estudo, demonstra-se que, em
seus quase 90 anos, a política voltada aos livros escolares passou por vários
formatos e governos, os quais, apesar de procurarem imprimir cada um a sua
marca, jamais ousaram comprometer o caráter de política pública de Estado que
ela vem assumindo desde que foi criada. Por fim, conclui-se que, apesar de suas
imperfeições, a política pública nacional do livro didático no Brasil registra
avanços tanto nos aspectos quantitativos como qualitativos, saindo de uma
política cuja gratuidade inicialmente era restrita a estudantes carentes para
um Programa com pretensões de acessibilidade universal.
Palavras-chave: Livro didático; Acessibilidade;
Desenho Universal; Educação Especial; Inclusão escolar.
Abstract: The study analyzes the historical path of the
national textbook policy in Brazil based on the concepts of accessibility,
universal design for learning and school inclusion. To this end, a
bibliographical review and documentary research are carried out in light of historical-dialectical materialism, highlighting
the achievements, contradictions and challenges of this important public
educational policy. Throughout the study, it is demonstrated that, in its
almost 90 years, the policy aimed at school books has
gone through various formats and governments, which, despite each seeking to
leave their mark, have never dared to compromise the character of public State
policy that it has assumed since it was created. Finally, it is concluded that,
despite its imperfections, the national public policy for textbooks in Brazil
has made progress in both quantitative and qualitative aspects, moving from a
policy in which free textbooks were initially restricted to needy students to a
Program with claims of universal accessibility.
Keywords: Textbook; Accessibility; Universal Design; Special Education; School
inclusion.
Resumen:
El estudio
analiza la trayectoria histórica de la
política nacional de libros de texto en Brasil a partir de los
conceptos de accesibilidad, diseño
universal para el aprendizaje
e inclusión escolar. Para ello,
se realiza una revisión bibliográfica y una investigación documental a la luz
del materialismo histórico-dialéctico,
destacando los logros, contradicciones
y desafíos de esta importante política educativa
pública. A lo largo del estudio se demuestra que, en sus casi 90 años de existencia, la política orientada al libro escolar ha pasado por diversos
formatos y gobiernos, que, a pesar
de buscar cada uno dejar su
huella, nunca se han
atrevido a comprometer el carácter de política
pública de Estado que ha asumido desde su creación. Finalmente, se concluye que, a pesar de sus imperfecciones, la política
pública nacional de libros de texto en Brasil ha
avanzado tanto en los aspectos cuantitativos como cualitativos, pasando de una
política en la que los libros de texto gratuitos estaban inicialmente restringidos a los
estudiantes carentes a un
Programa con pretensiones
de accesibilidad universal.
Palabras clave: Libro de texto; Accesibilidad;
Diseño Universal; Educación
Especial; Inclusión escolar
Introdução
Desde a
segunda metade do século XX que o
livro didático vem sendo objeto de estudos sistemáticos por parte dos
pesquisadores brasileiros ligados às mais diversas disciplinas acadêmicas (Freitag; Motta; Costa, 1987; Munakata, 2012a).
Nesse percurso, têm-se observado uma
ampliação do interesse de pesquisa para além do caráter ideológico desse
instrumento de disseminação escolar do saber teórico-científico e
artístico-cultural (Bittencourt, 2004;
Cassiano, 2007; Rocha; Somaza, 2012).
Como recurso pedagógico, o livro didático é não apenas muito presente no
cotidiano das escolas como, às vezes, é a principal fonte de conhecimento
sistematizado com a qual muitos estudantes têm contato em sua trajetória escolar.
Por isso, é fundamental que os manuais escolares sejam materiais de altíssima
qualidade científica e pedagógica, garantindo acessibilidade comunicacional e
didático-curricular aos estudantes em sua diversidade geracional, geográfica,
cultural, étnico-racial, física, sensorial, intelectual, comportamental,
etc.
Para fazer frente a essa
responsabilidade normativa e social de oferecer recursos pedagógicos acessíveis[2]
(Brasil, 1996, art. 59, I; 2015, art. 68), a política nacional do livro
didático, desde o início dos anos 2000, vem ampliando tanto o seu público como
também as estratégias de abordagem de seu conteúdo.
Neste trabalho, ocupamo-nos de
traçar considerações históricas acerca da referida política, desde sua
constituição, em 1938, até o ano de 2024, destacando seus avanços, contradições
e desafios na direção da
acessibilidade, aqui entendida, na esteira da Lei Brasileira de Inclusão
(LBI), como: “possibilidade e condição de alcance para utilização,
com segurança e autonomia,” de espaços, serviços e recursos por pessoas em sua
diversidade geracional, geográfica, étnico-racial, física, sensorial,
intelectual, comportamental, etc. (Brasil, 2015, art. 3º, inciso I).
Para a realização da pesquisa,
utilizamos como procedimentos metodológicos: 1) levantamento documental de
normativas do Estado brasileiro relacionadas ao livro didático: leis, decretos,
resoluções e portarias; 2) revisão
narrativa de literatura, compreendendo: livros, artigos, dissertações e teses
de doutorado.
O procedimento documental iniciou
tomando como referência a cronologia da política do livro didático no Brasil
disponibilizada no site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)[3].
A partir da indicação cronológica desse documento online, identificamos e
consultamos, também de forma virtual, cada uma das normativas relacionadas ao
objeto de investigação para conhecer o seu inteiro teor. Para isso, colocamos o
título de cada normativa no buscador Google, através do qual acessamos
documentos disponíveis no portal de legislação do Planalto, da Câmara dos
Deputados, do Ministério da Educação (MEC) e do FNDE.
Em paralelo com esse procedimento,
fizemos um levantamento bibliográfico online, no portal Catálogo de teses e
dissertações, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), usando como descritor a expressão “política nacional do livro
didático no Brasil”. Não estabelecemos filtro temporal no descritor, pois
interessava-nos trabalhos que abordassem a referida temática em perspectiva
histórica. A partir de uma leitura inicial do título, resumo e sumário de cada
trabalho, selecionamos para leitura integral as dissertações e teses que
tratavam dos aspectos históricos do livro didático no Brasil.
Através da leitura das dissertações
e teses pudemos aperfeiçoar tanto o levantamento documental, com base na
descoberta de normativas ausentes na cronologia feita pelo FNDE, como também a
pesquisa bibliográfica, mediante consulta às referências citadas pelos autores.
Neste último caso, complementamos a revisão de literatura com livros e artigos,
físicos e digitais, relacionados ao tema em discussão.
Outro caminho utilizado para fazer a
revisão de literatura foi a busca, através do Google acadêmico, por
artigos científicos que contemplassem os descritores: “livro didático”,
“acessibilidade”, “desenho universal”.
Todo esse percurso metodológico se
deu à luz do materialismo histórico-dialético, compreendendo-o como um
referencial teórico que caracteriza-se por tomar a
“[...] a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação” (Konder, 2008, p.8, grifos nossos). Isto é,
partimos da política pública do livro didático como uma realidade objetiva e
subjetiva que se materializa em normas, programas, documentos e ações a partir
dos quais o Estado, mediado pela permanente (histórica) luta de classes,
intervém na vida social, oferecendo, contraditoriamente à sua função liberal,
bens e/ou serviços à população como direito social.
Da
Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) ao Programa Nacional do Livro e do
Material Didático (PNLD)
O
livro didático é um recurso educacional que está presente no arcabouço
normativo brasileiro, direta ou indiretamente, desde a transferência da Família
Real portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, conforme apontou a pesquisa A legislação sobre livros didáticos no Brasil
(1808-1889), desenvolvida por Luna Abramo Bocchi, sob a coordenação de Kazumi Munakata (Bocchi, 2005 apud Munakata, 2012a).
De
acordo com a referida pesquisa, que tomou como fonte a Coleção das Leis do
Império do Brasil, durante o período supracitado, vários dispositivos
normativos fizeram menção ao livro didático, seja indicando os títulos a serem
adotados no ensino, seja regulamentando as condições de produção, circulação e
consumo do objeto cultural em discussão.
Esse
movimento não foi exclusivo para a escolarização de estudantes do ensino comum,
tendo em vista que, conforme aponta Leão (2023), criado em 1854, apenas três
anos depois o Imperial Instituto de Meninos Cegos, hoje Instituto
Benjamin Constant (IBC), já passou a contar com uma tipografia voltada à
adaptação e/ou produção de livros em Braille para auxiliar no processo de
ensino e aprendizagem dos educandos da referida instituição.
No
entanto, ressalvada sua presença no cenário normativo e educacional brasileiro
desde o século XIX, somente a partir da década de 1930 é que, de fato, o livro
didático ganhou uma
legislação específica de dimensão nacional. Isso aconteceu no bojo das
importantes reformas educacionais levadas a cabo, a partir do governo Getúlio
Vargas, tendo em vista que, no início da referida década, a educação brasileira
era merecidamente acusada pelos signatários de O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 de viver um
“estado de inorganização” (O Manifesto, 2006).
Assim, no que se refere diretamente ao livro didático, ainda na década
de 1930, é publicado o Decreto-Lei n. 1.006, de 30 de dezembro de 1938,
o qual “estabelece as condições de
produção, importação e utilização do livro didático” (Brasil, 1938).
No final do ano anterior, tinha sido publicado o Decreto-Lei
n. 93, de 21 de dezembro de 1937, mediante o qual se criou o Instituto Nacional
do Livro (INL)[4]. Embora o FNDE[5] inclua esse decreto como o primeiro marco temporal
do que atualmente é o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD),
entendemos que ele não tem o mesmo significado histórico do Decreto 1.006/38
para a política nacional do livro didático no Brasil.
Dizemos isso
por dois motivos. Primeiro, porque o Decreto-lei n. 93/37 não trata
especificamente do livro didático. Esse recurso educacional fica subentendido
na referida normativa quando esta, ao criar o INL, estabelece como competências
desse órgão: 1) a organização e publicação da Enciclopédia Brasileira e do
Dicionário da Língua Nacional; 2) a edição de obras raras e preciosas; 3) o
aumento, a melhoria e o barateamento da edição de livros no país e a
facilitação de obras importadas; 4) o incentivo à organização e auxílio na
manutenção de bibliotecas públicas (Brasil, 1937, art. 2º). No entanto,
conforme já aludimos anteriormente, referências esparsas ao objeto em análise,
como faz a supracitada lei, já vinham sendo registradas nas normativas desde o
final da Colônia, não havendo, assim, razão para somente o Decreto-lei n. 93/37
ser considerado o embrião do que atualmente é o PNLD.
O segundo
motivo diz respeito ao fato de que, diferentemente do que faz a normativa
anteriormente referida, o Decreto-lei n. 1.006/38 não somente cria a Comissão
Nacional do Livro Didático (CNLD)[6],
como também normatiza a elaboração, a utilização e o processo de autorização e
desautorização de obras didáticas. Neste sentido, trata-se de uma normativa
que, efetivamente, toma o manual escolar como objeto, definindo-o e traçando
regras gerais para a sua produção, comercialização e utilização, a exemplo do
critério de negativa de autorização de uso ao livro didático “[...] que não
contenha a declaração do preço de venda, o qual não poderá ser excessivo em
face do seu custo” (Brasil, 1938, art. 21, alínea e). Embora o artigo 8º desse
decreto previsse a distribuição gratuita, via caixa escolar, de livros
didáticos para “crianças necessitadas”, o foco da política nesse momento não
era a compra e distribuição de manuais escolares, e sim, a autorização das obras
que poderiam ser adquiridas pelos familiares para uso de seus filhos no
ambiente escolar.
Apesar de
sobreviver formalmente até 1969, a CNLD foi protagonista da política nacional
do livro didático apenas nos anos 1940, tendo em vista que, durante os anos de
1950 até meados da década de 1960, a tônica foi dada pela Campanha do Livro
Didático e Manuais de Ensino (Caldeme) e pela
Campanha Nacional do Material de Ensino (CNME). A partir da Ditadura Militar, a
política do livro se deu no âmbito dos acordos entre o Governo Federal e o
mercado editorial de livros didáticos no Brasil, sinalizando para aquilo que
seria uma constante a partir de então: a produção de livros didáticos como uma
mercadoria bastante lucrativa para o empresariado (Cassiano, 2007).
Sobre a Caldeme, observa Filgueiras (2011) que ela surgiu em 1952,
junto ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep[7]),
na gestão de Anísio Teixeira. Tinha como objetivo a avaliação da qualidade dos
manuais didáticos em circulação, a análise dos programas de ensino destinados
ao nível secundário e a produção de guias didáticos para o professorado. Isto
é, na prática, a CNLD continuava a fazer o processo de
autorização/desautorização das obras didáticas, com foco na adequação entre as
mesmas e os programas oficiais de ensino, ao passo que a Caldeme
realizava a avaliação técnica e científico-pedagógica dos manuais didáticos e
programas destinados ao ensino secundário e produzia obras de orientação aos
docentes. No entanto, conforme Filgueiras (2011, p. 140):
Apesar do vínculo da Caldeme com o Estado por
meio do Inep e do CBPE[8], seus estudos criticavam as políticas do próprio Estado, ao questionar
os programas oficiais, os exames e provas, a fiscalização federal e a avaliação
dos livros didáticos pela CNLD.
Além disso, é
importante destacar que, diferentemente da avaliação feita pela CNLD, a análise
realizada pela Caldeme não tinha a função de
autorizar ou desautorizar uma obra didática, e sim, o papel de apontar
elementos voltados à melhoria da qualidade científico-pedagógica da mesma.
Já a Campanha
Nacional do Material de Ensino (CNME), criada pelo Decreto n. 38.556, de
12 de janeiro de 1956, destinava-se a produzir e distribuir,
gratuitamente para os estudantes carentes – e a preço de custo para os demais -
material didático e paradidático como dicionários, atlas, livros,
etc. Essa iniciativa se somava aos incentivos fiscais concedidos pelo
governo ao mercado editorial brasileiro com o intuito de baratear o preço das
obras didáticas e estimular a industrialização do país. Como observa Filgueiras
(2013, p. 318):
[...] a política para o livro didático implantada no governo de
Juscelino Kubitschek integrava assim dois objetivos – com a CNME pretendia
diminuir as carências dos estudantes, mas mantinha a ênfase na
industrialização, com incentivo ao parque gráfico nacional.
Durante a
Ditadura Militar (1964 a 1985), vários órgãos estiveram à frente da política
nacional do livro didático. De 1966 a 1971, duas instituições dividiram a
tarefa de gestão da política pública voltada ao manual escolar. A primeira
delas foi a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (Colted).
Esse órgão tinha como objetivo aumentar a produtividade do mercado editorial
brasileiro e, consequentemente, baratear o preço do livro técnico e do didático
(Filgueiras, 2011). Ele foi criado em 1966, a partir de um acordo trianual de
cooperação entre o MEC[9], o
Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e a Agência Norte-Americana
para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). Por meio desse acordo, o MEC
entraria com o investimento financeiro e o SNEL e a Usaid com assessoria e
assistência técnica ao Ministério e as editoras na publicação de 51 milhões de
exemplares de livros a serem distribuídos gratuitamente para as escolas.
O segundo
órgão ao qual nos referimos foi a Fundação Nacional do Material Escolar (Fename), criado em 1967, para substituir a CNME.
Diferentemente da Colted, que tinha função gestora
junto ao mercado editorial na política do livro técnico e do livro didático, a Fename caracterizava-se como uma editora do Estado, na
medida em que se dedicava à produção direta e à venda de recursos didáticos
para as instituições escolares a preço de custo (Filgueiras, 2011).
Em 1971, após
denúncias de corrupção na Colted, o órgão foi
extinto, passando para o INL a responsabilidade pela política de produção,
edição e distribuição de livros técnicos e de livros didáticos do MEC. O
protagonismo do Instituto nesse período foi enorme, tendo em vista que, além de
assumir as funções da Colted, ele liderou, entre 1971
e 1976, a política de coedição de obras didáticas em parceria com o mercado
editorial brasileiro. Por meio dessa política, o Estado brasileiro financiava a
produção editorial de livros didáticos previamente submetidos à sua avaliação
pelas editoras. As obras aprovadas deveriam ser comercializadas pelas editoras
a preço de custo e, no mínimo, um quinto da publicação, que não deveria ser
inferior a cinco mil exemplares, era comprada pelo Governo Federal, em parceria
com os governos estaduais. Assim, conforme observa Höfling
(2000, p. 163): “com o sistema de
coedição, de censor oficial dos livros didáticos usados nas escolas
brasileiras, o Estado foi assumindo também o papel de financiador desses
livros”.
A primeira
experiência de coedição entre o setor público e a esfera privada com o intuito
de baratear o preço do livro no Brasil teve início, conforme Vahl (2014), em 1967, quando o INL passou a publicar obras
literárias nesse sistema. No entanto, segundo Filgueiras, apesar de se
prolongar até o ano de 1984, o sistema de coedição foi um bom negócio apenas
para as editoras. Ou seja, de acordo com a autora, o mercado editorial lucrava
duas vezes, na medida em que tinha suas obras didáticas financiadas pelo Estado
brasileiro, mas descumpria o acordo de barateamento, vendendo os livros por
valores superiores ao preço de custo.
Talvez se
possa buscar aí a origem da confusão acerca do lugar do INL na política
nacional do livro didático, tendo em vista a centralidade que o Instituto
ocupou nesse período. Contudo, diferentemente de como é apontado com
frequência, a participação direta do INL na política nacional do livro didático
começou bem depois da década de 1930. Primeiro, através do Decreto-lei n.
8.460, de 26 de dezembro de 1945, o referido órgão governamental passou a ser
responsável pela publicação oficial de manuais escolares. Além dessa mudança, o
referido decreto apresenta duas alterações com relação ao texto do Decreto-lei
de 1938, a saber: 1) garante a
livre circulação de livros, exceto daqueles escritos em língua estrangeira e
destinados ao ensino primário; e 2) restringe
ao professor a escolha do livro didático (antes o diretor fazia isso para o
ensino pré-primário e o primário). Também aparece no texto de 1945 a mudança na
quantidade de membros da comissão, um recuo na proibição destes submeterem
livros didáticos de sua autoria ao processo de autorização estatal e um detalhamento das funções da
Comissão do Livro. Entre as funções da referida Comissão, constava a
organização por subcomissões e a indicação de um presidente. Contudo, as duas
primeiras alterações já tinham sido introduzidas, respectivamente, pelos decretos-lei
n. 1.177 e 1.417, ambos de 1939, e esta última, em 1940, através da Portaria
Ministerial n. 253.
Já em 1966, o
Instituto ocupa uma cadeira no órgão máximo de deliberação (o Colegiado) da Colted (Filgueiras, 2011), assumindo a liderança da
política do livro didático, como vimos, apenas no início da década de 1970.
Nesse período,
conforme observa Vahl (2014, p. 67):
[...] no que diz
respeito ao livro didático foram lançados pelo INL, inicialmente, três subprogramas:
o Programa do Livro Didático – Ensino Fundamental (PLIDEF), o Programa do Livro
Didático – Ensino Médio (PLIDEM) e o Programa do Livro Didático – Ensino
Superior (PLIDES). Posteriormente, foram acrescentados o Programa do Livro
Didático – Ensino Supletivo (PLIDESU) e o Programa do Livro Didático – Ensino
de Computação (PLIDECOM).
Contudo, de
acordo com a referida autora, foi o Programa do Livro Didático - Ensino Fundamental (PLIDEF) aquele que
recebeu, de fato, a atenção do Estado brasileiro, seja no tocante à quantidade
de obras editadas, seja no que tange ao investimento público aplicado ou,
ainda, no que se refere ao tempo de funcionamento da referida política. Isto é,
criado em 1971, o PLIDEF sobreviveu até o ano de 1985, quando foi substituído
pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), mediante o Decreto n.
91.542, de 19 de agosto do referido ano.
A política
pública do livro didático permaneceu a mesma durante toda a década de 1970 até
meados dos anos 1980, mas teve mudanças nas instituições responsáveis pela sua
execução. O INL cuidou do assunto até 1976, quando foi substituído pela Fename, que ficou na liderança até o ano de 1983. De lá até
1985, quando foi criado o PNLD, a política do livro didático ficou sob a
responsabilidade da Fundação de Assistência ao Estudante (FAE). Essa
instituição permaneceu à frente do PNLD até o ano de 1997, quando foi extinta e
o Programa passou a ser, desde então, responsabilidade direta do FNDE.
Voltando à
criação do PNLD, que se deu no contexto de transição política da Ditadura
Militar para a denominada Nova República, é importante observar que o Programa
retoma algumas práticas interrompidas durante a Ditadura, como a liberdade
docente na escolha do livro didático e a reutilização das obras por mais de um
ano letivo. Mas ele também inova ao estender a gratuidade da distribuição a
todos os estudantes do então Ensino de Primeiro Grau (atual Ensino
Fundamental).
Cassiano
(2007) divide o PNLD em duas fases, de acordo com o efetivo alcance das metas
inicialmente estipuladas pelo Programa. A primeira vai de 1985 a 1995 e, o
segundo momento, a partir de 1995. De acordo com a autora (2007, p. 27):
[...] exceção feita ao que foi prescrito para os livros descartáveis, em
que os dispositivos legais foram efetivamente cumpridos, na medida em que o
governo parou de comprar tais livros, com os outros dois pontos prescritos, não
se deu o mesmo, na primeira fase desse programa.
De acordo com
a autora, mesmo prevendo desde o início a universalização do atendimento para o
Ensino de Primeiro Grau, somente a partir de 1993 foi que o PNLD começou a ter
garantidas as condições efetivas para o alcance gradativo dessa meta. Isso se
deu porque, naquele ano, o governo brasileiro passou a assegurar dotação
orçamentária própria para o Programa, por meio do salário-educação. É
importante destacar que essa mudança já se deu no contexto dos debates acerca
da necessidade de uma educação inclusiva, tendo como eventos representativos a
Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien,
na Tailândia, em 1990, e a Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais
Especiais, realizada em Salamanca, na Espanha, em 1994. O Brasil é signatário
das duas declarações oriundas dos referidos eventos.
Já no que se
refere à liberdade do professorado na escolha do livro didático, esta é uma
questão polêmica. Apesar de formalmente garantida e gradativamente
aperfeiçoada, conforme observa Cassiano (2007), a escolha docente se dá em
condições nem sempre favoráveis. Primeiro, devido à frequente rotatividade
escolar dos professores. Segundo, por causa de falcatruas como: 1) envio às
escolas de obras não escolhidas pelos docentes; 2) lobby ilegal das
editoras no processo de escolha ou, ainda; 3) devido aos condicionamentos da pré-escolha realizada pelo MEC, através da avaliação
pedagógica das obras e apresentação dos livros recomendados, mediante o Guia de
Livros Didáticos, como acontece, com diversas reformulações, desde 1996.
Esse novo
momento, iniciado a partir de 1995, é chamado por Cassiano (2007, p. 45) de
segunda fase do PNLD, devido à superação de gargalos que comprometeram não
apenas a efetiva operacionalização do referido Programa em sua primeira década
de funcionamento, como já apareciam como pontos de estrangulamentos da política
pública do livro didático nos anos anteriores.
Entre as
dificuldades destacadas pela autora estaria a extensão da gratuidade, tendo em
vista que, desde o Decreto-lei n. 1.006/38, a distribuição pelo governo se
restringia às crianças carentes (Brasil, 1938, art. 8º). Aos demais estudantes
o Estado brasileiro procurou atender, principalmente, através das políticas de
barateamento dos custos do livro didático, como vimos em iniciativas como a Fename, a Colted e o processo de
financiamento do mercado editorial, mediante a coedição de livros em parceria
com as unidades da federação. Nesse cenário, não é possível falar em
acessibilidade, seja por conta da restrição socioeconômica, seja devido à
exclusão dos estudantes com deficiência ou necessidades educacionais
específicas.
Com o PNLD,
pela primeira vez na história da política do livro didático no Brasil, a
gratuidade é assumida como meta para todo o Ensino de Primeiro Grau oferecido
nas escolas públicas. Embora as dificuldades de financiamento tenham
comprometido o alcance dessa finalidade na primeira fase do Programa, a partir
de 1995 essa política pública só se expandiu, tendo em vista que, ainda no
final da última década do século XX, em 1997, o governo brasileiro criou outro
programa que, junto com o PNLD, passou a constituir a política pública do livro
no Brasil. Trata-se do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE),
instituído pela Portaria n° 584, de 28 de
abril de 1997. Por meio dele o Estado brasileiro passou a garantir
a distribuição gratuita de obras literárias, pedagógicas e científicas e de
recursos didáticos diversos, como enciclopédias, atlas, globos terrestres, dicionários, etc. Um dos diferenciais desse programa com
relação a políticas anteriores de distribuição de obras para bibliotecas
escolares é que, entre 2001 e 2004, além do fornecimento de acervo para as
escolas, ele garantiu a distribuição individual gratuita de obras literárias
para os estudantes do Ensino Fundamental.
A expansão do
PNLD aconteceu, inicialmente, com a universalização do atendimento de todo o
Ensino Fundamental, seja no que se refere aos componentes curriculares
contemplados[10],
seja no tocante aos estudantes atendidos, na medida em que o critério para
recebimento individual das obras passou a ser o cadastro do educando no Censo
Escolar, e não, a sua situação socioeconômica.
Assim, a
partir da segunda metade da década de 1990, a política educacional brasileira
foi influenciada fortemente pelo ideal internacional de uma educação inclusiva,
entendida como inserção de sujeitos e grupos sociais historicamente excluídos
ou marginalizados no processo de escolarização, na sala de aula comum, a
exemplo das pessoas com deficiência (Piccolo, 2023). Nesse contexto, PNLD não
só diversificou o acervo de obras gratuitamente distribuídas, como estendeu,
gradativamente, o atendimento a toda a Educação Básica, buscando considerar a
diversidade e as especificidades dos estudantes que a compõe.
Ainda em 2001,
o PNLD passou a ofertar, de forma experimental, livros em Braille para
estudantes do Ensino Fundamental com deficiência visual (cegueira). Em 2003 foi
criado o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM[11]),
atendendo uma parcela de estudantes até então excluída do PNLD. Em 2004, o
Programa atendeu uma demanda específica dos estudantes surdos, disponibilizando
gratuitamente o Dicionário
Enciclopédico Ilustrado Trilíngue: Libras/Português/Inglês. Em 2007, o PNLD
universalizou a distribuição de livros didáticos em Braille e criou o
Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos
(PNLA), incorporado, em 2009, ao Programa Nacional do Livro Didático para
Educação de Jovens e Adultos (PNLD EJA[12]).
Ainda em 2009 foi lançado pelo MEC, em parceria com a Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), o software MecDayse, voltado à
criação e disponibilização de livros em áudio para os estudantes com
deficiência visual. Em 2013 foi implantado o Programa Nacional do Livro
Didático do Campo (PNLD Campo[13]) e
o Programa Nacional do Livro Didático para Alfabetização na Idade Certa (PNLD
PNAIC). Em 2017, mediante o Decreto n. 9.099, de 18 de julho daquele ano, o
governo brasileiro unificou o PNLD e o PNBE, criando o Programa Nacional do
Livro e do Material Didático (PNLD) e se comprometeu em atender também a
Educação Infantil (Brasil, 2017, art. 6º, inciso I), o que passou a ser
cumprido a partir do PNLD 2022, com livros didáticos para os professores e
estudantes da pré-escola e obras literárias para todos os estudantes dessa
etapa educacional. No caso da distribuição de livros didáticos para a Educação
Infantil, o MEC publicou uma nota no início de 2025, anunciando a descontinuada
da política, com o seguinte argumento:
O livro didático, sendo direcionado a uma criança em abstrato, exclui a
diversidade brasileira, as formas de vida e interesses das crianças. Eles
portam uma visão estreita de educação que, ao invés de abrir o mundo às
crianças, acaba por limitá-lo ao que tais obras circunscrevem. O centro da
proposta passa a ser o conteúdo do livro e não as crianças. Conteúdos que
chegam de forma descontextualizada e que fazem pouco sentido. Pensar o
desenvolvimento integral das crianças de 0 a 5 anos e 11 meses, significa ampliar
experiências (Brasil, 2025, online).
Não entraremos aqui no mérito dessa discussão, tendo em vista que isso
exigiria a construção de outro texto e fugiria aos propósitos do presente
artigo. No entanto, mencionamos o acontecimento por dois motivos: 1) ele
atualiza o objeto sobre o qual estamos tratando, mostrando a dinamicidade dessa
política pública atravessada por disputas mercantis e ideopolíticas;
2) dada a unificação entre PNLD e PNBE, em 2017, os estudantes da Educação
Infantil continuarão sendo atendidos pela política brasileira de distribuição
gratuita de livros escolares, tendo em vista que a oferta de obras literárias
continua mantida.
Da
acessibilidade setorial à meta de desenho universal nos livros didáticos
Em 6 de julho de 2015, após tramitação no Congresso Nacional desde o ano
2000, foi aprovada a Lei 13.146, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão
(LBI) ou Estatuto da Pessoa com Deficiência. Entre as várias medidas previstas
na Lei para a construção de um sistema educacional inclusivo, pode-se destacar
a exigência de que
O poder público deve adotar mecanismos de
incentivo à produção, à edição, à difusão, à distribuição e à comercialização
de livros em formatos acessíveis, inclusive em publicações da administração
pública ou financiadas com recursos públicos, com vistas a garantir à pessoa
com deficiência o direito de acesso à leitura, à informação e à comunicação.
§ 1º Nos editais de compras de livros,
inclusive para o abastecimento ou a atualização de acervos de bibliotecas em
todos os níveis e modalidades de educação e de bibliotecas públicas, o poder
público deverá adotar cláusulas de impedimento à participação de editoras que
não ofertem sua produção também em formatos acessíveis (Brasil, 2015, art. 68,
§ 1º).
Assim, na busca de atender a legislação mencionada, a partir de 2018,
instituiu-se o PNLD Acessível, contemplando, além da impressão de obras em
Braille-tinta[14], para estudantes com baixa visão e cegueira, a
disponibilização das obras no formato Electronic
Publication (EPUB3). Conforme destaca o FNDE,
mediante o Informe n. 13/2022:
[...] O material em EPUB
permite a ampliação dos caracteres, a audição do conteúdo do livro e o uso de
contraste para leitura, podendo atender também estudantes com deficiência
física, deficiência motora e dislexia (Brasil, 2022, n.p).
Assim, ao adotar o formato EPUB3 para as mesmas obras
impressas, o PNLD busca avançar em direção a uma acessibilidade universal,
atendendo não somente as especificidades de estudantes com deficiência,
Transtorno do Espectro Autista (TEA) e/ou altas habilidades/superdotação
(Brasil, 1996, art. 58), mas também estudantes com demandas específicas de
aprendizagem, mas não reconhecidos legalmente como Público-Alvo da Educação
Especial (PAEE).
Em 2024, o livro digital acessível no formato EPUB3 foi substituído pelo
aplicativo PNLD LIP com a promessa de acesso universal mais interativo, por
estudantes e professores com e sem deficiência, das obras impressas do PNLD.
Neste sentido, parece-nos que o PNLD começa a adotar uma perspectiva de
acessibilidade que não somente considera as especificidades das pessoas com
cegueira e surdez, como já vinha ocorrendo desde o início dos anos 2000, mas em
sintonia com o conceito de desenho universal, previsto na LBI como:
[...] concepção de produtos, ambientes,
programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de
adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia
assistiva (Brasil, 2015, art. 3º, inciso II).
No campo educacional, a perspectiva do desenho universal vem sendo
desenvolvida e aplicada, nos Estados Unidos, desde os anos 1990, pelo Center
for Applied Special Technology -
CAST[15] sob a
denominação Universal Designer Learning (UDL), traduzida no Brasil como
Desenho Universal para a Aprendizagem - DUA (Sebastián-Heredero,
2020).
Segundo Zerbato e Mendes (2018), o DUA
consiste em uma estratégia didático-pedagógica que parte de evidências
neurocientíficas acerca da existência de três redes cerebrais envolvidas no
processo de aprendizagem: rede de reconhecimento, afetiva e estratégica. A
partir desse pressuposto, defende-se a tese segundo a qual os currículos
escolares são deficientes diante da diversidade dos estudantes. Assim,
propõe-se três princípios orientadores para a prática educativa: oferecer aos
estudantes múltiplas formas de engajamento/envolvimento com o assunto trabalho,
múltiplas formas de apresentação do conteúdo e múltiplos meios de ação e
expressão da aprendizagem.
Tratando sobre a relação entre acessibilidade e DUA e as possibilidades
de diálogo entre esses dois conceitos no Ensino Superior, Pletsch
e Souza (2021, p. 22) destacam:
Levar
em consideração o DUA no planejamento e nas estratégias de ensino sugere que o
mesmo conteúdo pode estar disponível em diferentes formas e mídias, dependendo
do objetivo a ser trabalhado. Um assunto ou conceito, por exemplo, pode ser
apresentado de modo interativo, usando recursos como áudio, imagem, vídeo ou
animação. É fundamental que os recursos sejam pensados levando em conta a
usabilidade prática dos estudantes, de preferência validados por eles próprios.
Parece-nos ser nessa direção de diálogo entre acessibilidade e DUA que,
ao menos em termos intencionais, propõe-se a caminhar o PNLD. Essa mudança
coincide com a pauta da educação inclusiva, seja no tocante à ampliação do
público a ser beneficiado em termos de etapa ou modalidade de ensino, seja no
que tange à consideração das características dos diferentes estudantes,
especialmente, daqueles com deficiência ou necessidades educacionais
específicas.
Nesse movimento de reconfiguração do PNLD rumo à acessibilidade
universal dois aspectos merecem atenção. O primeiro deles diz respeito ao fato
de essa mudança ocorrer em sintonia com a perspectiva da Educação Especial como
modalidade de educação escolar com foco na escola comum e enquanto campo de
conhecimento acadêmico-científico que a alimenta com concepções, recursos e
estratégias de didático-pedagógicas, a exemplo de temas como acessibilidade,
DUA e inclusão escolar, e dos diferentes recursos de Tecnologia Assistiva,
Comunicação Aumentativa e Alternativa, entre outros. Ou seja, na medida em que
avançamos nas normativas e no campo da produção acadêmico-científica em direção
à perspectiva da inclusão escolar, a política nacional do livro didático também
marchou paulatinamente nessa direção, seja pela expansão das etapas e
modalidades educativas a serem atendidas pelo PNLD, seja pela consideração das
especificidades de aprendizagem dos estudantes em sua diversidade geracional
(PNLD EJA, Educação Infantil...), geográfica (PNLD do campo), sensorial (livros
em Braille, áudio, imagem/vídeo, EPUB3, etc.), entre outras.
O segundo aspecto a ser considerado diz respeito a consolidação do livro
didático, no âmbito dos debates sobre educação para todos, como uma mercadoria
lucrativa para o sistema do capital (Bittencourt, 2008). Um exemplo a esse respeito foram as
reivindicações da Associação Brasileira dos Autores de Livros
Educativos (Abrelivros), em parceria com a Associação
Brasileira de Editores de Livros (Abrale), através de
documento intitulado Para formar um país de leitores:
contribuições para a política do livro escolar no Brasil, encaminhado ao então presidente eleito,
Luiz Inácio Lula da Silva, em dezembro de 2002 (Cassiano, 2007). Ao pautarem
suas demandas através de entidades representativas, autores e editores de
livros didáticos exerceram forte pressão junto ao novo governo, imprimindo,
junto com ele, sua marca na política pública nacional do livro didático no
Brasil.
Assim, não podemos perder de vista que o livro didático é também um
produto comercial e que os avanços no quesito acessibilidade aqui registrados
precisam ser apreendidos em uma perspectiva materialista histórico-dialética,
isto é, como um movimento contraditório que, dando-se no interior da sociedade
capitalista, é também também
atravessado por sua lógica perversa de transformar tudo em valor de troca
(Marx, 2013).
Desse modo, pressionado pelo movimento internacional de educação
inclusiva, o Estado amplia a oferta do livro didático não apenas como recurso
pedagógico, mas também como mercadoria a ser consumida, beneficiando, ao mesmo
tempo, embora não na mesma proporção, os sujeitos escolares e o mercado
editorial (Munakata, 2012b).
Considerações finais
Ao
longo do presente trabalho demonstramos que, criada em 1938, quando do
surgimento da Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), a política pública
voltada aos livros escolares passou por vários formatos e governos, os quais,
apesar de procurarem imprimir cada um a sua marca, jamais ousaram comprometer o
caráter de política pública de Estado que ela vem assumindo desde que foi
criada. Ou seja, mesmo assumindo várias roupagens e sofrendo inúmeras
reconfigurações, a política pública nacional do livro didático se ampliou ao
longo de sua existência, seja nos aspectos quantitativos, seja na qualidade do
material distribuído aos estudantes brasileiros.
Desde
2001, além dos livros impressos,
o PNLD tem distribuído livros acessíveis para estudantes com cegueira, baixa
visão, surdez e, mais recentemente, também avançou na oferta de obras em
formato digital acessível para todos os estudantes, na busca de um diálogo entre
acessibilidade e DUA que, ao menos em termos intencionais, parece-nos
promissor.
Esse passo representa mais um avanço
nos quase 90 anos de política nacional do livro didático no Brasil, a qual
inicialmente distribuía livros de forma gratuita apenas para estudantes
carentes e, atualmente, além de atender gratuitamente todos os estudantes das
escolas públicas de Educação Básica, também procura atendê-los em suas
especificidades geracional, geográfica, étnico-racial, física, sensorial,
intelectual, entre outras.
No entanto, dois desafios precisam
ser enfrentados para que a acessibilidade universal seja não somente uma
sinalização de boas intenções na esteira de um discurso politicamente correto.
O primeiro deles, conforme sugerem Pletsch et al.
(2018), consiste na consideração de que o livro didático, mesmo em formato
acessível, não dispensa o trabalho pedagógico do professorado, sendo
necessário, em muitos casos, fornecer apoio focalizado para que os estudantes,
sobretudo, aqueles com deficiência ou necessidade educacional específica mais
acentuada, consigam lidar com o recurso tecnológico disponível.
O segundo desafio diz respeito a necessidade de avançarmos em pesquisas
voltadas à avaliação prática desses recursos no sentido de melhor
compreendermos sua usabilidade na vida real pelos
diferentes estudantes. Uma experiência nessa direção que pode iluminar tanto o
trabalho das editoras na produção de materiais acessíveis como também o
processo de investigação dos pesquisadores é o protocolo desenvolvido no âmbito
do Projeto Desenho Universal para a Aprendizagem: implementação e avaliação
do protocolo do livro digital acessível (Pletsch
et al., 2018), liderado por pesquisadores do Observatório de Educação
Especial e Inclusão Escolar (ObEE), da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em parceria com estudiosos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e o Movimento Down.
Neste sentido, concluimos reafirmando que,
embora não possamos desconsiderar as disputas de interesse do capital na
produção e comercialização de obras didáticas, também não podemos negar os
avanços do PNLD na direção da acessibilidade universal, mesmo que precisemos
aprofundar os estudos acerca da aplicabilidade e usabilidade dos materiais
didáticos produzidos sob a denominação de livros acessíveis.
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25 abr. 2025.
Recebido em: 25 de abril de 2025.
Aceito em: 02 de setembro de 2025.
Publicado em: 02 de setembro de 2025.
[1] Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
[2]
Estamos considerando como acessíveis materiais
preocupados com o enfrentamento das diversas barreiras que podem obstruir o
ideal de inclusão escolar, sobretudo, de estudantes com deficiência ou outras
necessidades educacionais específicas.
[3] Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/programas-do-livro/pnld/historico.
Acesso em: 20 ago. 2025.
[4]
Sobre a trajetória do INL e o seu papel na política editorial brasileira, ver
os trabalhos de Filgueiras (2011) e Vahl (2014).
[5] Autarquia federal criada durante a Ditadura Militar
(em 1968) e responsável pela execução financeira de diversos projetos e
programas do Ministério da Educação – MEC, entre os quais está o PNLD.
[6]
Apesar de criada em 1938, a CNLD só foi instalada em 19 de julho de 1940. Sobre
a composição e a atuação dessa comissão, ver o capítulo 1 da tese de doutorado
de Filgueiras (2011, p. 17-79).
[7] A
sigla permanece a mesma, mas o órgão é denominado atualmente Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
[8]
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), órgão do Inep criado em
1955, por Anísio Teixeira, no interior do qual passou a funcionar a Caldeme.
[9]
Até 15 de março de 1985, ocasião em que foi criado o Ministério da Cultura,
mediante o Decreto n. 91.144 daquele ano, a sigla MEC designava Ministério da
Educação e Cultura.
[10]
Até o ano de 1997 foram contempladas com livros didáticos as disciplinas:
Alfabetização, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Estudos Sociais,
História e Geografia. Em 2011 o PNLD incluiu livros de Inglês e de Espanhol e,
em 2016, a componente curricular Arte.
[11] O
PNLEM foi criado através da Resolução CD FNDE n. 38, de 15 de
outubro de 2003. No entanto, o atendimento aos estudantes se deu de forma
gradativa: entre 2004 e 2006 foram contempladas as disciplinas Língua
Portuguesa e Matemática; Biologia em 2007; História e Química em 2008; Física e Geografia em 2009; Inglês, Espanhol,
Filosofia e Sociologia em 2015 e Arte em 2015.
[12] Instituído pela Resolução CD FNDE n. 18, de 24 de abril de 2007, o PNLA
foi absorvido, em 2009, por meio da Resolução CD FNDE n. 51, de 16 de setembro
de 2009, pelo PNLD EJA. Com essa medida, o Programa ampliou o atendimento
outrora restrito aos alfabetizandos do Programa Brasil Alfabetizado (PBA),
passando a contemplar estudantes das escolas públicas de ensino fundamental e
médio na modalidade EJA. Foi o primeiro programa do livro a incluir a
disciplina Arte.
[13]
Instituído pela Resolução n. 40, de 26 de julho de 2011, o
PNLD Campo distribuiu em suas duas edições (2013 e 2016), livros consumíveis de
Alfabetização Matemática, Letramento e Alfabetização, Língua portuguesa,
Matemática, Ciências, História e Geografia. O Programa se destina a atender as
especificidades de estudantes do primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental
de escolas públicas da área rural, seriadas e multisseriada.
[14] Consiste
na impressão do código Braille de forma justaposta à impressão do mesmo texto
utilizando o alfabeto convencional, de modo a possibilitar a leitura paralela
por pessoas com deficiência visual (cegueira e/ou baixa visão) e por videntes.
[15] Em Português: Centro
de Tecnologia Especial Aplicada (CAST).