POLÍTICA NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO NO BRASIL:

da gratuidade restrita à acessibilidade universal

NATIONAL TEXTBOOK POLICY IN BRAZIL:

from restricted free access to universal accessibility

POLÍTICA NACIONAL DE LIBROS DE TEXTO EN BRASIL:

del libre acceso restringido a la accesibilidad universal

Valci Melo[1]

 

 

Resumo: O estudo analisa o percurso histórico da política nacional do livro didático no Brasil a partir dos conceitos de acessibilidade, desenho universal para a aprendizagem e inclusão escolar. Para tal, faz-se uma revisão bibliográfica e investigação documental à luz do materialismo histórico-dialético, destacando-se as conquistas, contradições e desafios dessa importante política pública educacional. Ao longo do estudo, demonstra-se que, em seus quase 90 anos, a política voltada aos livros escolares passou por vários formatos e governos, os quais, apesar de procurarem imprimir cada um a sua marca, jamais ousaram comprometer o caráter de política pública de Estado que ela vem assumindo desde que foi criada. Por fim, conclui-se que, apesar de suas imperfeições, a política pública nacional do livro didático no Brasil registra avanços tanto nos aspectos quantitativos como qualitativos, saindo de uma política cuja gratuidade inicialmente era restrita a estudantes carentes para um Programa com pretensões de acessibilidade universal.

 

Palavras-chave: Livro didático; Acessibilidade; Desenho Universal; Educação Especial; Inclusão escolar.

 

 

Abstract: The study analyzes the historical path of the national textbook policy in Brazil based on the concepts of accessibility, universal design for learning and school inclusion. To this end, a bibliographical review and documentary research are carried out in light of historical-dialectical materialism, highlighting the achievements, contradictions and challenges of this important public educational policy. Throughout the study, it is demonstrated that, in its almost 90 years, the policy aimed at school books has gone through various formats and governments, which, despite each seeking to leave their mark, have never dared to compromise the character of public State policy that it has assumed since it was created. Finally, it is concluded that, despite its imperfections, the national public policy for textbooks in Brazil has made progress in both quantitative and qualitative aspects, moving from a policy in which free textbooks were initially restricted to needy students to a Program with claims of universal accessibility.

 

Keywords: Textbook; Accessibility; Universal Design; Special Education; School inclusion.

 

 

Resumen:

El estudio analiza la trayectoria histórica de la política nacional de libros de texto en Brasil a partir de los conceptos de accesibilidad, diseño universal para el aprendizaje e inclusión escolar. Para ello, se realiza una revisión bibliográfica y una investigación documental a la luz del materialismo histórico-dialéctico, destacando los logros, contradicciones y desafíos de esta importante política educativa pública. A lo largo del estudio se demuestra que, en sus casi 90 años de existencia, la política orientada al libro escolar ha pasado por diversos formatos y gobiernos, que, a pesar de buscar cada uno dejar su huella, nunca se han atrevido a comprometer el carácter de política pública de Estado que ha asumido desde su creación. Finalmente, se concluye que, a pesar de sus imperfecciones, la política pública nacional de libros de texto en Brasil ha avanzado tanto en los aspectos cuantitativos como cualitativos, pasando de una política en la que los libros de texto gratuitos estaban inicialmente restringidos a los estudiantes carentes a un Programa con pretensiones de accesibilidad universal.

 

Palabras clave: Libro de texto; Accesibilidad; Diseño Universal; Educación Especial; Inclusión escolar

 

Introdução

 

            Desde a segunda metade do século XX que o livro didático vem sendo objeto de estudos sistemáticos por parte dos pesquisadores brasileiros ligados às mais diversas disciplinas acadêmicas (Freitag; Motta; Costa, 1987; Munakata, 2012a).

            Nesse percurso, têm-se observado uma ampliação do interesse de pesquisa para além do caráter ideológico desse instrumento de disseminação escolar do saber teórico-científico e artístico-cultural (Bittencourt, 2004;  Cassiano, 2007; Rocha; Somaza, 2012).

            Como recurso pedagógico, o livro didático é não apenas muito presente no cotidiano das escolas como, às vezes, é a principal fonte de conhecimento sistematizado com a qual muitos estudantes  têm contato em sua trajetória escolar. Por isso, é fundamental que os manuais escolares sejam materiais de altíssima qualidade científica e pedagógica, garantindo acessibilidade comunicacional e didático-curricular aos estudantes em sua diversidade geracional, geográfica, cultural, étnico-racial, física, sensorial, intelectual, comportamental, etc.

            Para fazer frente a essa responsabilidade normativa e social de oferecer recursos pedagógicos acessíveis[2] (Brasil, 1996, art. 59, I; 2015, art. 68), a política nacional do livro didático, desde o início dos anos 2000, vem ampliando tanto o seu público como também as estratégias de abordagem de seu conteúdo.

            Neste trabalho, ocupamo-nos de traçar considerações históricas acerca da referida política, desde sua constituição, em 1938, até o ano de 2024, destacando seus avanços, contradições e desafios na direção da acessibilidade, aqui entendida, na esteira da Lei Brasileira de Inclusão (LBI),  como: “possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia,” de espaços, serviços e recursos por pessoas em sua diversidade geracional, geográfica, étnico-racial, física, sensorial, intelectual, comportamental, etc. (Brasil, 2015, art. 3º, inciso I).

            Para a realização da pesquisa, utilizamos como procedimentos metodológicos: 1) levantamento documental de normativas do Estado brasileiro relacionadas ao livro didático: leis, decretos, resoluções e portarias; 2) revisão narrativa de literatura, compreendendo: livros, artigos, dissertações e teses de doutorado.

            O procedimento documental iniciou tomando como referência a cronologia da política do livro didático no Brasil disponibilizada no site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)[3]. A partir da indicação cronológica desse documento online, identificamos e consultamos, também de forma virtual, cada uma das normativas relacionadas ao objeto de investigação para conhecer o seu inteiro teor. Para isso, colocamos o título de cada normativa no buscador Google, através do qual acessamos documentos disponíveis no portal de legislação do Planalto, da Câmara dos Deputados, do Ministério da Educação (MEC) e do FNDE.

            Em paralelo com esse procedimento, fizemos um levantamento bibliográfico online, no portal Catálogo de teses e dissertações, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), usando como descritor a expressão “política nacional do livro didático no Brasil”. Não estabelecemos filtro temporal no descritor, pois interessava-nos trabalhos que abordassem a referida temática em perspectiva histórica. A partir de uma leitura inicial do título, resumo e sumário de cada trabalho, selecionamos para leitura integral as dissertações e teses que tratavam dos aspectos históricos do livro didático no Brasil.

            Através da leitura das dissertações e teses pudemos aperfeiçoar tanto o levantamento documental, com base na descoberta de normativas ausentes na cronologia feita pelo FNDE, como também a pesquisa bibliográfica, mediante consulta às referências citadas pelos autores. Neste último caso, complementamos a revisão de literatura com livros e artigos, físicos e digitais, relacionados ao tema em discussão.

            Outro caminho utilizado para fazer a revisão de literatura foi a busca, através do Google acadêmico, por artigos científicos que contemplassem os descritores: “livro didático”, “acessibilidade”, “desenho universal”.

            Todo esse percurso metodológico se deu à luz do materialismo histórico-dialético, compreendendo-o como um referencial teórico que caracteriza-se por tomar a “[...] a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação” (Konder, 2008, p.8, grifos nossos). Isto é, partimos da política pública do livro didático como uma realidade objetiva e subjetiva que se materializa em normas, programas, documentos e ações a partir dos quais o Estado, mediado pela permanente (histórica) luta de classes, intervém na vida social, oferecendo, contraditoriamente à sua função liberal, bens e/ou serviços à população como direito social.

 

Da Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) ao Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD)

 

                 O livro didático é um recurso educacional que está presente no arcabouço normativo brasileiro, direta ou indiretamente, desde a transferência da Família Real portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, conforme apontou a pesquisa A legislação sobre livros didáticos no Brasil (1808-1889), desenvolvida por Luna Abramo Bocchi, sob a coordenação de Kazumi Munakata (Bocchi, 2005 apud Munakata, 2012a).

                 De acordo com a referida pesquisa, que tomou como fonte a Coleção das Leis do Império do Brasil, durante o período supracitado, vários dispositivos normativos fizeram menção ao livro didático, seja indicando os títulos a serem adotados no ensino, seja regulamentando as condições de produção, circulação e consumo do objeto cultural em discussão.

                 Esse movimento não foi exclusivo para a escolarização de estudantes do ensino comum, tendo em vista que, conforme aponta Leão (2023), criado em 1854, apenas três anos depois o Imperial Instituto de Meninos Cegos, hoje Instituto Benjamin Constant (IBC), já passou a contar com uma tipografia voltada à adaptação e/ou produção de livros em Braille para auxiliar no processo de ensino e aprendizagem dos educandos da referida instituição.

                 No entanto, ressalvada sua presença no cenário normativo e educacional brasileiro desde o século XIX, somente a partir da década de 1930 é que, de fato, o livro didático ganhou uma legislação específica de dimensão nacional. Isso aconteceu no bojo das importantes reformas educacionais levadas a cabo, a partir do governo Getúlio Vargas, tendo em vista que, no início da referida década, a educação brasileira era merecidamente acusada pelos signatários de O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 de viver um “estado de inorganização(O Manifesto, 2006).

Assim, no que se refere diretamente ao livro didático, ainda na década de 1930, é publicado o Decreto-Lei n. 1.006, de 30 de dezembro de 1938, o qual “estabelece as condições de produção, importação e utilização do livro didático” (Brasil, 1938).

No final do ano anterior, tinha sido publicado o Decreto-Lei n. 93, de 21 de dezembro de 1937, mediante o qual se criou o Instituto Nacional do Livro (INL)[4]. Embora o FNDE[5] inclua esse decreto como o primeiro marco temporal do que atualmente é o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), entendemos que ele não tem o mesmo significado histórico do Decreto 1.006/38 para a política nacional do livro didático no Brasil.

Dizemos isso por dois motivos. Primeiro, porque o Decreto-lei n. 93/37 não trata especificamente do livro didático. Esse recurso educacional fica subentendido na referida normativa quando esta, ao criar o INL, estabelece como competências desse órgão: 1) a organização e publicação da Enciclopédia Brasileira e do Dicionário da Língua Nacional; 2) a edição de obras raras e preciosas; 3) o aumento, a melhoria e o barateamento da edição de livros no país e a facilitação de obras importadas; 4) o incentivo à organização e auxílio na manutenção de bibliotecas públicas (Brasil, 1937, art. 2º). No entanto, conforme já aludimos anteriormente, referências esparsas ao objeto em análise, como faz a supracitada lei, já vinham sendo registradas nas normativas desde o final da Colônia, não havendo, assim, razão para somente o Decreto-lei n. 93/37 ser considerado o embrião do que atualmente é o PNLD.

O segundo motivo diz respeito ao fato de que, diferentemente do que faz a normativa anteriormente referida, o Decreto-lei n. 1.006/38 não somente cria a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD)[6], como também normatiza a elaboração, a utilização e o processo de autorização e desautorização de obras didáticas. Neste sentido, trata-se de uma normativa que, efetivamente, toma o manual escolar como objeto, definindo-o e traçando regras gerais para a sua produção, comercialização e utilização, a exemplo do critério de negativa de autorização de uso ao livro didático “[...] que não contenha a declaração do preço de venda, o qual não poderá ser excessivo em face do seu custo” (Brasil, 1938, art. 21, alínea e). Embora o artigo 8º desse decreto previsse a distribuição gratuita, via caixa escolar, de livros didáticos para “crianças necessitadas”, o foco da política nesse momento não era a compra e distribuição de manuais escolares, e sim, a autorização das obras que poderiam ser adquiridas pelos familiares para uso de seus filhos no ambiente escolar.

Apesar de sobreviver formalmente até 1969, a CNLD foi protagonista da política nacional do livro didático apenas nos anos 1940, tendo em vista que, durante os anos de 1950 até meados da década de 1960, a tônica foi dada pela Campanha do Livro Didático e Manuais de Ensino (Caldeme) e pela Campanha Nacional do Material de Ensino (CNME). A partir da Ditadura Militar, a política do livro se deu no âmbito dos acordos entre o Governo Federal e o mercado editorial de livros didáticos no Brasil, sinalizando para aquilo que seria uma constante a partir de então: a produção de livros didáticos como uma mercadoria bastante lucrativa para o empresariado (Cassiano, 2007).

Sobre a Caldeme, observa Filgueiras (2011) que ela surgiu em 1952, junto ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep[7]), na gestão de Anísio Teixeira. Tinha como objetivo a avaliação da qualidade dos manuais didáticos em circulação, a análise dos programas de ensino destinados ao nível secundário e a produção de guias didáticos para o professorado. Isto é, na prática, a CNLD continuava a fazer o processo de autorização/desautorização das obras didáticas, com foco na adequação entre as mesmas e os programas oficiais de ensino, ao passo que a Caldeme realizava a avaliação técnica e científico-pedagógica dos manuais didáticos e programas destinados ao ensino secundário e produzia obras de orientação aos docentes. No entanto, conforme Filgueiras (2011, p. 140):

 

Apesar do vínculo da Caldeme com o Estado por meio do Inep e do CBPE[8], seus estudos criticavam as políticas do próprio Estado, ao questionar os programas oficiais, os exames e provas, a fiscalização federal e a avaliação dos livros didáticos pela CNLD.

 

Além disso, é importante destacar que, diferentemente da avaliação feita pela CNLD, a análise realizada pela Caldeme não tinha a função de autorizar ou desautorizar uma obra didática, e sim, o papel de apontar elementos voltados à melhoria da qualidade científico-pedagógica da mesma.

Já a Campanha Nacional do Material de Ensino (CNME), criada pelo Decreto n. 38.556, de 12 de janeiro de 1956, destinava-se a produzir e distribuir, gratuitamente para os estudantes carentes – e a preço de custo para os demais - material didático e paradidático como dicionários, atlas, livros, etc. Essa iniciativa se somava aos incentivos fiscais concedidos pelo governo ao mercado editorial brasileiro com o intuito de baratear o preço das obras didáticas e estimular a industrialização do país. Como observa Filgueiras (2013, p. 318):

 

[...] a política para o livro didático implantada no governo de Juscelino Kubitschek integrava assim dois objetivos – com a CNME pretendia diminuir as carências dos estudantes, mas mantinha a ênfase na industrialização, com incentivo ao parque gráfico nacional.

 

Durante a Ditadura Militar (1964 a 1985), vários órgãos estiveram à frente da política nacional do livro didático. De 1966 a 1971, duas instituições dividiram a tarefa de gestão da política pública voltada ao manual escolar. A primeira delas foi a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (Colted). Esse órgão tinha como objetivo aumentar a produtividade do mercado editorial brasileiro e, consequentemente, baratear o preço do livro técnico e do didático (Filgueiras, 2011). Ele foi criado em 1966, a partir de um acordo trianual de cooperação entre o MEC[9], o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). Por meio desse acordo, o MEC entraria com o investimento financeiro e o SNEL e a Usaid com assessoria e assistência técnica ao Ministério e as editoras na publicação de 51 milhões de exemplares de livros a serem distribuídos gratuitamente para as escolas.

O segundo órgão ao qual nos referimos foi a Fundação Nacional do Material Escolar (Fename), criado em 1967, para substituir a CNME. Diferentemente da Colted, que tinha função gestora junto ao mercado editorial na política do livro técnico e do livro didático, a Fename caracterizava-se como uma editora do Estado, na medida em que se dedicava à produção direta e à venda de recursos didáticos para as instituições escolares a preço de custo (Filgueiras, 2011).

Em 1971, após denúncias de corrupção na Colted, o órgão foi extinto, passando para o INL a responsabilidade pela política de produção, edição e distribuição de livros técnicos e de livros didáticos do MEC. O protagonismo do Instituto nesse período foi enorme, tendo em vista que, além de assumir as funções da Colted, ele liderou, entre 1971 e 1976, a política de coedição de obras didáticas em parceria com o mercado editorial brasileiro. Por meio dessa política, o Estado brasileiro financiava a produção editorial de livros didáticos previamente submetidos à sua avaliação pelas editoras. As obras aprovadas deveriam ser comercializadas pelas editoras a preço de custo e, no mínimo, um quinto da publicação, que não deveria ser inferior a cinco mil exemplares, era comprada pelo Governo Federal, em parceria com os governos estaduais. Assim, conforme observa Höfling (2000, p. 163): “com o sistema de coedição, de censor oficial dos livros didáticos usados nas escolas brasileiras, o Estado foi assumindo também o papel de financiador desses livros”.

A primeira experiência de coedição entre o setor público e a esfera privada com o intuito de baratear o preço do livro no Brasil teve início, conforme Vahl (2014), em 1967, quando o INL passou a publicar obras literárias nesse sistema. No entanto, segundo Filgueiras, apesar de se prolongar até o ano de 1984, o sistema de coedição foi um bom negócio apenas para as editoras. Ou seja, de acordo com a autora, o mercado editorial lucrava duas vezes, na medida em que tinha suas obras didáticas financiadas pelo Estado brasileiro, mas descumpria o acordo de barateamento, vendendo os livros por valores superiores ao preço de custo.

Talvez se possa buscar aí a origem da confusão acerca do lugar do INL na política nacional do livro didático, tendo em vista a centralidade que o Instituto ocupou nesse período. Contudo, diferentemente de como é apontado com frequência, a participação direta do INL na política nacional do livro didático começou bem depois da década de 1930. Primeiro, através do Decreto-lei n. 8.460, de 26 de dezembro de 1945, o referido órgão governamental passou a ser responsável pela publicação oficial de manuais escolares. Além dessa mudança, o referido decreto apresenta duas alterações com relação ao texto do Decreto-lei de 1938, a saber: 1)  garante a livre circulação de livros, exceto daqueles escritos em língua estrangeira e destinados ao ensino primário; e 2) restringe ao professor a escolha do livro didático (antes o diretor fazia isso para o ensino pré-primário e o primário). Também aparece no texto de 1945 a mudança na quantidade de membros da comissão, um recuo na proibição destes submeterem livros didáticos de sua autoria ao processo de autorização estatal e um detalhamento das funções da Comissão do Livro. Entre as funções da referida Comissão, constava a organização por subcomissões e a indicação de um presidente. Contudo, as duas primeiras alterações já tinham sido introduzidas, respectivamente, pelos decretos-lei n. 1.177 e 1.417, ambos de 1939, e esta última, em 1940, através da Portaria Ministerial n. 253.

Já em 1966, o Instituto ocupa uma cadeira no órgão máximo de deliberação (o Colegiado) da Colted (Filgueiras, 2011), assumindo a liderança da política do livro didático, como vimos, apenas no início da década de 1970.

Nesse período, conforme observa Vahl (2014, p. 67):

 

[...] no que diz respeito ao livro didático foram lançados pelo INL, inicialmente, três subprogramas: o Programa do Livro Didático – Ensino Fundamental (PLIDEF), o Programa do Livro Didático – Ensino Médio (PLIDEM) e o Programa do Livro Didático – Ensino Superior (PLIDES). Posteriormente, foram acrescentados o Programa do Livro Didático – Ensino Supletivo (PLIDESU) e o Programa do Livro Didático – Ensino de Computação (PLIDECOM).

 

Contudo, de acordo com a referida autora, foi o Programa do Livro Didático - Ensino Fundamental (PLIDEF) aquele que recebeu, de fato, a atenção do Estado brasileiro, seja no tocante à quantidade de obras editadas, seja no que tange ao investimento público aplicado ou, ainda, no que se refere ao tempo de funcionamento da referida política. Isto é, criado em 1971, o PLIDEF sobreviveu até o ano de 1985, quando foi substituído pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), mediante o Decreto n. 91.542, de 19 de agosto do referido ano.

A política pública do livro didático permaneceu a mesma durante toda a década de 1970 até meados dos anos 1980, mas teve mudanças nas instituições responsáveis pela sua execução. O INL cuidou do assunto até 1976, quando foi substituído pela Fename, que ficou na liderança até o ano de 1983. De lá até 1985, quando foi criado o PNLD, a política do livro didático ficou sob a responsabilidade da Fundação de Assistência ao Estudante (FAE). Essa instituição permaneceu à frente do PNLD até o ano de 1997, quando foi extinta e o Programa passou a ser, desde então, responsabilidade direta do FNDE.

Voltando à criação do PNLD, que se deu no contexto de transição política da Ditadura Militar para a denominada Nova República, é importante observar que o Programa retoma algumas práticas interrompidas durante a Ditadura, como a liberdade docente na escolha do livro didático e a reutilização das obras por mais de um ano letivo. Mas ele também inova ao estender a gratuidade da distribuição a todos os estudantes do então Ensino de Primeiro Grau (atual Ensino Fundamental).

Cassiano (2007) divide o PNLD em duas fases, de acordo com o efetivo alcance das metas inicialmente estipuladas pelo Programa. A primeira vai de 1985 a 1995 e, o segundo momento, a partir de 1995. De acordo com a autora (2007, p. 27):

 

[...] exceção feita ao que foi prescrito para os livros descartáveis, em que os dispositivos legais foram efetivamente cumpridos, na medida em que o governo parou de comprar tais livros, com os outros dois pontos prescritos, não se deu o mesmo, na primeira fase desse programa.

 

De acordo com a autora, mesmo prevendo desde o início a universalização do atendimento para o Ensino de Primeiro Grau, somente a partir de 1993 foi que o PNLD começou a ter garantidas as condições efetivas para o alcance gradativo dessa meta. Isso se deu porque, naquele ano, o governo brasileiro passou a assegurar dotação orçamentária própria para o Programa, por meio do salário-educação. É importante destacar que essa mudança já se deu no contexto dos debates acerca da necessidade de uma educação inclusiva, tendo como eventos representativos a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990, e a Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais, realizada em Salamanca, na Espanha, em 1994. O Brasil é signatário das duas declarações oriundas dos referidos eventos.

Já no que se refere à liberdade do professorado na escolha do livro didático, esta é uma questão polêmica. Apesar de formalmente garantida e gradativamente aperfeiçoada, conforme observa Cassiano (2007), a escolha docente se dá em condições nem sempre favoráveis. Primeiro, devido à frequente rotatividade escolar dos professores. Segundo, por causa de falcatruas como: 1) envio às escolas de obras não escolhidas pelos docentes; 2) lobby ilegal das editoras no processo de escolha ou, ainda; 3) devido aos condicionamentos da pré-escolha realizada pelo MEC, através da avaliação pedagógica das obras e apresentação dos livros recomendados, mediante o Guia de Livros Didáticos, como acontece, com diversas reformulações, desde 1996.

Esse novo momento, iniciado a partir de 1995, é chamado por Cassiano (2007, p. 45) de segunda fase do PNLD, devido à superação de gargalos que comprometeram não apenas a efetiva operacionalização do referido Programa em sua primeira década de funcionamento, como já apareciam como pontos de estrangulamentos da política pública do livro didático nos anos anteriores.

Entre as dificuldades destacadas pela autora estaria a extensão da gratuidade, tendo em vista que, desde o Decreto-lei n. 1.006/38, a distribuição pelo governo se restringia às crianças carentes (Brasil, 1938, art. 8º). Aos demais estudantes o Estado brasileiro procurou atender, principalmente, através das políticas de barateamento dos custos do livro didático, como vimos em iniciativas como a Fename, a Colted e o processo de financiamento do mercado editorial, mediante a coedição de livros em parceria com as unidades da federação. Nesse cenário, não é possível falar em acessibilidade, seja por conta da restrição socioeconômica, seja devido à exclusão dos estudantes com deficiência ou necessidades educacionais específicas.

Com o PNLD, pela primeira vez na história da política do livro didático no Brasil, a gratuidade é assumida como meta para todo o Ensino de Primeiro Grau oferecido nas escolas públicas. Embora as dificuldades de financiamento tenham comprometido o alcance dessa finalidade na primeira fase do Programa, a partir de 1995 essa política pública só se expandiu, tendo em vista que, ainda no final da última década do século XX, em 1997, o governo brasileiro criou outro programa que, junto com o PNLD, passou a constituir a política pública do livro no Brasil. Trata-se do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), instituído pela Portaria n° 584, de 28 de abril de 1997. Por meio dele o Estado brasileiro passou a garantir a distribuição gratuita de obras literárias, pedagógicas e científicas e de recursos didáticos diversos, como enciclopédias, atlas, globos terrestres, dicionários, etc. Um dos diferenciais desse programa com relação a políticas anteriores de distribuição de obras para bibliotecas escolares é que, entre 2001 e 2004, além do fornecimento de acervo para as escolas, ele garantiu a distribuição individual gratuita de obras literárias para os estudantes do Ensino Fundamental.

A expansão do PNLD aconteceu, inicialmente, com a universalização do atendimento de todo o Ensino Fundamental, seja no que se refere aos componentes curriculares contemplados[10], seja no tocante aos estudantes atendidos, na medida em que o critério para recebimento individual das obras passou a ser o cadastro do educando no Censo Escolar, e não, a sua situação socioeconômica.

Assim, a partir da segunda metade da década de 1990, a política educacional brasileira foi influenciada fortemente pelo ideal internacional de uma educação inclusiva, entendida como inserção de sujeitos e grupos sociais historicamente excluídos ou marginalizados no processo de escolarização, na sala de aula comum, a exemplo das pessoas com deficiência (Piccolo, 2023). Nesse contexto, PNLD não só diversificou o acervo de obras gratuitamente distribuídas, como estendeu, gradativamente, o atendimento a toda a Educação Básica, buscando considerar a diversidade e as especificidades dos estudantes que a compõe.

Ainda em 2001, o PNLD passou a ofertar, de forma experimental, livros em Braille para estudantes do Ensino Fundamental com deficiência visual (cegueira). Em 2003 foi criado o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM[11]), atendendo uma parcela de estudantes até então excluída do PNLD. Em 2004, o Programa atendeu uma demanda específica dos estudantes surdos, disponibilizando gratuitamente o Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue: Libras/Português/Inglês. Em 2007, o PNLD universalizou a distribuição de livros didáticos em Braille e criou o Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA), incorporado, em 2009, ao Programa Nacional do Livro Didático para Educação de Jovens e Adultos (PNLD EJA[12]). Ainda em 2009 foi lançado pelo MEC, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o software MecDayse, voltado à criação e disponibilização de livros em áudio para os estudantes com deficiência visual. Em 2013 foi implantado o Programa Nacional do Livro Didático do Campo (PNLD Campo[13]) e o Programa Nacional do Livro Didático para Alfabetização na Idade Certa (PNLD PNAIC). Em 2017, mediante o Decreto n. 9.099, de 18 de julho daquele ano, o governo brasileiro unificou o PNLD e o PNBE, criando o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e se comprometeu em atender também a Educação Infantil (Brasil, 2017, art. 6º, inciso I), o que passou a ser cumprido a partir do PNLD 2022, com livros didáticos para os professores e estudantes da pré-escola e obras literárias para todos os estudantes dessa etapa educacional. No caso da distribuição de livros didáticos para a Educação Infantil, o MEC publicou uma nota no início de 2025, anunciando a descontinuada da política, com o seguinte argumento:

 

O livro didático, sendo direcionado a uma criança em abstrato, exclui a diversidade brasileira, as formas de vida e interesses das crianças. Eles portam uma visão estreita de educação que, ao invés de abrir o mundo às crianças, acaba por limitá-lo ao que tais obras circunscrevem. O centro da proposta passa a ser o conteúdo do livro e não as crianças. Conteúdos que chegam de forma descontextualizada e que fazem pouco sentido. Pensar o desenvolvimento integral das crianças de 0 a 5 anos e 11 meses, significa ampliar experiências (Brasil, 2025, online).

 

Não entraremos aqui no mérito dessa discussão, tendo em vista que isso exigiria a construção de outro texto e fugiria aos propósitos do presente artigo. No entanto, mencionamos o acontecimento por dois motivos: 1) ele atualiza o objeto sobre o qual estamos tratando, mostrando a dinamicidade dessa política pública atravessada por disputas mercantis e ideopolíticas; 2) dada a unificação entre PNLD e PNBE, em 2017, os estudantes da Educação Infantil continuarão sendo atendidos pela política brasileira de distribuição gratuita de livros escolares, tendo em vista que a oferta de obras literárias continua mantida.

 

Da acessibilidade setorial à meta de desenho universal nos livros didáticos

 

Em 6 de julho de 2015, após tramitação no Congresso Nacional desde o ano 2000, foi aprovada a Lei 13.146, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão (LBI) ou Estatuto da Pessoa com Deficiência. Entre as várias medidas previstas na Lei para a construção de um sistema educacional inclusivo, pode-se destacar a exigência de que

 

O poder público deve adotar mecanismos de incentivo à produção, à edição, à difusão, à distribuição e à comercialização de livros em formatos acessíveis, inclusive em publicações da administração pública ou financiadas com recursos públicos, com vistas a garantir à pessoa com deficiência o direito de acesso à leitura, à informação e à comunicação.

§ 1º Nos editais de compras de livros, inclusive para o abastecimento ou a atualização de acervos de bibliotecas em todos os níveis e modalidades de educação e de bibliotecas públicas, o poder público deverá adotar cláusulas de impedimento à participação de editoras que não ofertem sua produção também em formatos acessíveis (Brasil, 2015, art. 68, § 1º).

 

Assim, na busca de atender a legislação mencionada, a partir de 2018, instituiu-se o PNLD Acessível, contemplando, além da impressão de obras em Braille-tinta[14], para estudantes com baixa visão e cegueira, a disponibilização das obras no formato Electronic Publication (EPUB3). Conforme destaca o FNDE, mediante o Informe n. 13/2022:

 

[...] O material em EPUB permite a ampliação dos caracteres, a audição do conteúdo do livro e o uso de contraste para leitura, podendo atender também estudantes com deficiência física, deficiência motora e dislexia (Brasil, 2022, n.p).

 

Assim, ao adotar o formato EPUB3 para as mesmas obras impressas, o PNLD busca avançar em direção a uma acessibilidade universal, atendendo não somente as especificidades de estudantes com deficiência, Transtorno do Espectro Autista (TEA) e/ou altas habilidades/superdotação (Brasil, 1996, art. 58), mas também estudantes com demandas específicas de aprendizagem, mas não reconhecidos legalmente como Público-Alvo da Educação Especial (PAEE).

Em 2024, o livro digital acessível no formato EPUB3 foi substituído pelo aplicativo PNLD LIP com a promessa de acesso universal mais interativo, por estudantes e professores com e sem deficiência, das obras impressas do PNLD. Neste sentido, parece-nos que o PNLD começa a adotar uma perspectiva de acessibilidade que não somente considera as especificidades das pessoas com cegueira e surdez, como já vinha ocorrendo desde o início dos anos 2000, mas em sintonia com o conceito de desenho universal, previsto na LBI como:

 

[...] concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva (Brasil, 2015, art. 3º, inciso II).

 

No campo educacional, a perspectiva do desenho universal vem sendo desenvolvida e aplicada, nos Estados Unidos, desde os anos 1990, pelo Center for Applied Special Technology  - CAST[15]  sob a denominação Universal Designer Learning (UDL), traduzida no Brasil como Desenho Universal para a Aprendizagem - DUA (Sebastián-Heredero, 2020).

Segundo Zerbato e Mendes (2018), o DUA consiste em uma estratégia didático-pedagógica que parte de evidências neurocientíficas acerca da existência de três redes cerebrais envolvidas no processo de aprendizagem: rede de reconhecimento, afetiva e estratégica. A partir desse pressuposto, defende-se a tese segundo a qual os currículos escolares são deficientes diante da diversidade dos estudantes. Assim, propõe-se três princípios orientadores para a prática educativa: oferecer aos estudantes múltiplas formas de engajamento/envolvimento com o assunto trabalho, múltiplas formas de apresentação do conteúdo e múltiplos meios de ação e expressão da aprendizagem.

Tratando sobre a relação entre acessibilidade e DUA e as possibilidades de diálogo entre esses dois conceitos no Ensino Superior, Pletsch e Souza (2021, p. 22) destacam:

 

Levar em consideração o DUA no planejamento e nas estratégias de ensino sugere que o mesmo conteúdo pode estar disponível em diferentes formas e mídias, dependendo do objetivo a ser trabalhado. Um assunto ou conceito, por exemplo, pode ser apresentado de modo interativo, usando recursos como áudio, imagem, vídeo ou animação. É fundamental que os recursos sejam pensados levando em conta a usabilidade prática dos estudantes, de preferência validados por eles próprios.

 

Parece-nos ser nessa direção de diálogo entre acessibilidade e DUA que, ao menos em termos intencionais, propõe-se a caminhar o PNLD. Essa mudança coincide com a pauta da educação inclusiva, seja no tocante à ampliação do público a ser beneficiado em termos de etapa ou modalidade de ensino, seja no que tange à consideração das características dos diferentes estudantes, especialmente, daqueles com deficiência ou necessidades educacionais específicas.

Nesse movimento de reconfiguração do PNLD rumo à acessibilidade universal dois aspectos merecem atenção. O primeiro deles diz respeito ao fato de essa mudança ocorrer em sintonia com a perspectiva da Educação Especial como modalidade de educação escolar com foco na escola comum e enquanto campo de conhecimento acadêmico-científico que a alimenta com concepções, recursos e estratégias de didático-pedagógicas, a exemplo de temas como acessibilidade, DUA e inclusão escolar, e dos diferentes recursos de Tecnologia Assistiva, Comunicação Aumentativa e Alternativa, entre outros. Ou seja, na medida em que avançamos nas normativas e no campo da produção acadêmico-científica em direção à perspectiva da inclusão escolar, a política nacional do livro didático também marchou paulatinamente nessa direção, seja pela expansão das etapas e modalidades educativas a serem atendidas pelo PNLD, seja pela consideração das especificidades de aprendizagem dos estudantes em sua diversidade geracional (PNLD EJA, Educação Infantil...), geográfica (PNLD do campo), sensorial (livros em Braille, áudio, imagem/vídeo, EPUB3, etc.), entre outras.

O segundo aspecto a ser considerado diz respeito a consolidação do livro didático, no âmbito dos debates sobre educação para todos, como uma mercadoria lucrativa para o sistema do capital (Bittencourt, 2008). Um exemplo a esse respeito foram as reivindicações da Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrelivros), em parceria com a Associação Brasileira de Editores de Livros (Abrale), através de documento intitulado Para formar um país de leitores: contribuições para a política do livro escolar no Brasil, encaminhado ao então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em dezembro de 2002 (Cassiano, 2007). Ao pautarem suas demandas através de entidades representativas, autores e editores de livros didáticos exerceram forte pressão junto ao novo governo, imprimindo, junto com ele, sua marca na política pública nacional do livro didático no Brasil.

Assim, não podemos perder de vista que o livro didático é também um produto comercial e que os avanços no quesito acessibilidade aqui registrados precisam ser apreendidos em uma perspectiva materialista histórico-dialética, isto é, como um movimento contraditório que, dando-se no interior da sociedade capitalista, é também também atravessado por sua lógica perversa de transformar tudo em valor de troca (Marx, 2013).

Desse modo, pressionado pelo movimento internacional de educação inclusiva, o Estado amplia a oferta do livro didático não apenas como recurso pedagógico, mas também como mercadoria a ser consumida, beneficiando, ao mesmo tempo, embora não na mesma proporção, os sujeitos escolares e o mercado editorial (Munakata, 2012b).

 

Considerações finais

 

            Ao longo do presente trabalho demonstramos que, criada em 1938, quando do surgimento da Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), a política pública voltada aos livros escolares passou por vários formatos e governos, os quais, apesar de procurarem imprimir cada um a sua marca, jamais ousaram comprometer o caráter de política pública de Estado que ela vem assumindo desde que foi criada. Ou seja, mesmo assumindo várias roupagens e sofrendo inúmeras reconfigurações, a política pública nacional do livro didático se ampliou ao longo de sua existência, seja nos aspectos quantitativos, seja na qualidade do material distribuído aos estudantes brasileiros.

            Desde 2001, além dos livros impressos, o PNLD tem distribuído livros acessíveis para estudantes com cegueira, baixa visão, surdez e, mais recentemente, também avançou na oferta de obras em formato digital acessível para todos os estudantes, na busca de um diálogo entre acessibilidade e DUA que, ao menos em termos intencionais, parece-nos promissor.

            Esse passo representa mais um avanço nos quase 90 anos de política nacional do livro didático no Brasil, a qual inicialmente distribuía livros de forma gratuita apenas para estudantes carentes e, atualmente, além de atender gratuitamente todos os estudantes das escolas públicas de Educação Básica, também procura atendê-los em suas especificidades geracional, geográfica, étnico-racial, física, sensorial, intelectual, entre outras.

            No entanto, dois desafios precisam ser enfrentados para que a acessibilidade universal seja não somente uma sinalização de boas intenções na esteira de um discurso politicamente correto. O primeiro deles, conforme sugerem Pletsch et al. (2018), consiste na consideração de que o livro didático, mesmo em formato acessível, não dispensa o trabalho pedagógico do professorado, sendo necessário, em muitos casos, fornecer apoio focalizado para que os estudantes, sobretudo, aqueles com deficiência ou necessidade educacional específica mais acentuada, consigam lidar com o recurso tecnológico disponível.

O segundo desafio diz respeito a necessidade de avançarmos em pesquisas voltadas à avaliação prática desses recursos no sentido de melhor compreendermos sua usabilidade na vida real pelos diferentes estudantes. Uma experiência nessa direção que pode iluminar tanto o trabalho das editoras na produção de materiais acessíveis como também o processo de investigação dos pesquisadores é o protocolo desenvolvido no âmbito do Projeto Desenho Universal para a Aprendizagem: implementação e avaliação do protocolo do livro digital acessível (Pletsch et al., 2018), liderado por pesquisadores do Observatório de Educação Especial e Inclusão Escolar (ObEE), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em parceria com estudiosos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e o Movimento Down.

Neste sentido, concluimos reafirmando que, embora não possamos desconsiderar as disputas de interesse do capital na produção e comercialização de obras didáticas, também não podemos negar os avanços do PNLD na direção da acessibilidade universal, mesmo que precisemos aprofundar os estudos acerca da aplicabilidade e usabilidade dos materiais didáticos produzidos sob a denominação de livros acessíveis.  

 

Referências

 

BITTENCOURT, C. M. F.. Autores e editores de compêndios e livros de leitura (1810-1910). Educação e Pesquisa, v. 30, n. 3, p. 475–491, set. 2004. . Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/pnghDKWfrjkTxN6gPQyDYbr/abstract/?lang=pt. Acesso em: 2abr.  2025.

 

BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de historia: fundamentos e métodos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

 

BRASIL. Decreto-Lei n. 93, de 21 de dezembro de 1937. Cria o Instituto Nacional do Livro. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, DF, 27 dez. 1937. Seção 1, p. 25586.

 

BRASIL. Decreto-lei n. 1.006, de 30 de dezembro de 1938. Estabelece as condições de produção, importação e utilização do livro didático. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, DF, 05 jan. 1939. Seção 1, p. 277.

 

BRASIL. Decreto-lei n. 1.177, de 29 de março de 1939. Dispõe sobre o funcionamento da Comissão Nacional do Livro Didático no ano de 1939. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, DF, 31 mar. 1939. Seção 1, p. 7403.

 

BRASIL. Decreto-lei n. 1.417, 13 de julho de 1939. Dispõe sobre o regime do livro didático. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, DF, 15 jul. 1939. Seção 1, p. 16935.

 

BRASIL. Ministério da Educação e Saúde Pública. Portaria Ministerial n. 253, 27 de dezembro de 1940. Instruções para funcionamento da Comissão Nacional do Livro Didático. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, DF, 27 dez. 1940. Seção 1, p. 23759- 23760.

 

BRASIL. Decreto-Lei n. 8.460, de 26 de dezembro de 1945. Consolida a legislação sobre as condições de produção, importação e utilização do livro didático. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, DF, 28 dez. 1945. Seção 1, p. 19208.

 

BRASIL. Decreto n. 38.556, de 12 de janeiro de 1956. Institui a Campanha Nacional de Material de Ensino. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, DF, 12 jan. 1956. Seção 1, p. 632.

 

BRASIL. Decreto n. 91.144, de 15 de março de 1985. Cria o Ministério da Cultura [...]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 mar. 1985. Seção 1, p. 4703.

 

BRASIL. Decreto n. 91.542, de 19 de Agosto de 1985. Institui o Programa Nacional do Livro Didático [...]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 ago. 1985. Seção 1, p. 12178.

 

BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 19 abr. 2025.

 

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Portaria n. 584, de 28 de abril de 1997. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 abr. 1997. Seção 1, p. 8.519.

 

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CD FNDE n. 38, de 15 de outubro de 2003. Dispões sobre a execução do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio - PNLEM, no seu Projeto-Piloto (2005 - 2007). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 out. 2003.

 

BRASIL. Ministério da educação. Resolução CD FNDE n. 18, de 24 de abril de 2007. Dispõe sobre o Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos – PNLA. Disponível em: https://encurtador.com.br/zGJ8Y.  Acesso em: 20 abr. 2025.

 

BRASIL. Ministério da educação. Resolução CD FNDE n. 51, de 16 de setembro de 2009. Dispõe sobre o Programa Nacional do Livro Didático para Educação de Jovens e Adultos (PNLD EJA). Disponível em: Disponível em: https://encurtador.com.br/LZRPy. Acesso em: 19 abr. 2025.

 

BRASIL. Ministério da educação. Resolução n. 40, de 26 de julho de 2011. Dispõe sobre o Programa Nacional do Livro Didático do Campo (PNLD Campo) para as escolas do campo. Disponível em: https://encurtador.com.br/MNY0C. Acesso em: 20 abr. 2025.

 

BRASIL. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), [2024]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm Acesso em: 10 jul. 2024.

 

BRASIL. Decreto n. 9.099, de 18 de julho de 2017. Dispõe sobre o Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 jul. 2017. Seção 1, p. 7.

 

BRASIL. Ministério da Educação. Informe 13/2022 – COARE/FNDE: livros do PNLD em formato acessível - Braille e EPUB. Disponível em: https://encurtador.com.br/8lyqp. Acesso em: 20 abr. 2025.

 

BRASIL. Ministério da Educação. Por que o PNLD não vai mais adquirir livros “didáticos” para a educação infantil? Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/politica-nacional-de-educacao-infantil/por-que-o-pnld-nao. Acesso em: 20 ago. 2025.

 

CASSIANO, C. C. F. O mercado do livro didático no Brasil: da criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) à entrada do capital internacional espanhol (1985-2007). Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação Educação: História, Política, Sociedade. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.

 

FILGUEIRAS, J. M. A produção de materiais didáticos pelo MEC: da Campanha Nacional de Material de Ensino à Fundação Nacional de Material Escolar. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 33, n. 65, p. 313-335, jun. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/NKst9MKrWyTfnPQdyMMVPrJ/. Acesso em: 25 abr. 2025.

 

FILGUEIRAS, J. M. Os processos de avaliação de livros didáticos no Brasil (1938-1984). Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação Educação: História, Política, Sociedade. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.

 

FREITAG, B.; MOTTA, V.; COSTA, W. O estado da arte do livro didático no Brasil. Brasília: INEP, 1987.

 

HÖFLING, E. M. Notas para discussão quanto à implementação de programas de governo: em foco o Programa Nacional do Livro Didático. Educação & Sociedade, Campinas - SP, ano XXI, n. 70, p. 159-170, abr. 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302000000100009&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 25 abr. 2025.

KONDER, L. O que dialética. 28. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.

 

LEÃO, G.B.O.S. Educar-se em pontos salientes: produção e circulação do livro em braille no Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023.

 

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro 1: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

 

MUNAKATA, K. O livro didático: alguns temas de pesquisa. Rev. bras. hist. educ., Campinas, v. 12, n. 3 (30), p. 179-197, set./dez. 2012a. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/38817. Acesso em: 25 abr. 2025.

 

MUNAKATA, K. O livro didático como mercadoria. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 3 (69), p. 51-66, set./dez. 2012b. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73072012000300004. Acesso em: 25 abr. 2025.

 

O MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA (1932). Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. especial, p.188–204, ago. 2006. Disponível em: https://www.histedbr.fe.unicamp.br/pf-histedbr/manifesto_1932.pdf. Acesso em: 19 abr. 2025.

 

PICCOLO, G. Por que devemos abandonar a ideia de educação inclusiva. Educ. Soc., Campinas, v. 44, e260386, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/ywPj7Z3kdhmL5PLtQhN63hv/. Acesso em: 25 abr. 2025.

 

PLETSCH, M. D. et al. Desenho Universal para a Aprendizagem: implementação e avaliação do protocolo do livro digital acessível. Relatório Técnico Científico. Nova Iguaçu: UFRRJ, 2018.

 

PLETSCH, M.D; SOUZA, I.M.S. Diálogos entre acessibilidade e Desenho

Universal na aprendizagem. In: PLETSCH, M.D. et al (orgs.). Acessibilidade e Desenho Universal na Aprendizagem. Campos dos Goytacazes (RJ): Encontrografia, 2021.

 

ROCHA, H. H. P.; SOMOZA, M. Apresentação do dossiê Manuais escolares: múltiplas facetas de um objeto cultural. Pro-Posições,  Campinas, v. 23, n. 3, p. 21-31, dez.  2012. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8642826. Acesso em: 19 abr. 2025.

 

SEBASTIÁN-HEREDERO, E.. Diretrizes para o Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA). Revista Brasileira de Educação Especial, v. 26, n. 4, p. 733–768, out. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbee/a/F5g6rWB3wTZwyBN4LpLgv5C/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 abr. 2025.

 

VAHL, M. M.. O Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental do Instituto Nacional do Livro – PLIDEF/INL (1971-1976): um estudo sobre as condições históricas e sociais e as paradas em jogo no campo. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2014.

 

ZERBATO, A.; MENDES, E. DUA como estratégia na inclusão escolar. Educação Unisinos, 22(2):147-155, abril-junho 2018. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/edu.2018.222.04. Acesso em: 25 abr. 2025.

 

 

Recebido em: 25 de abril de 2025.

Aceito em: 02 de setembro de 2025.

Publicado em: 02 de setembro de 2025.



[1] Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

[2] Estamos considerando como acessíveis materiais preocupados com o enfrentamento das diversas barreiras que podem obstruir o ideal de inclusão escolar, sobretudo, de estudantes com deficiência ou outras necessidades educacionais específicas.

[3] Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/programas-do-livro/pnld/historico. Acesso em: 20 ago. 2025.

[4] Sobre a trajetória do INL e o seu papel na política editorial brasileira, ver os trabalhos de Filgueiras (2011) e Vahl (2014).

[5] Autarquia federal criada durante a Ditadura Militar (em 1968) e responsável pela execução financeira de diversos projetos e programas do Ministério da Educação – MEC, entre os quais está o PNLD.

[6] Apesar de criada em 1938, a CNLD só foi instalada em 19 de julho de 1940. Sobre a composição e a atuação dessa comissão, ver o capítulo 1 da tese de doutorado de Filgueiras (2011, p. 17-79).

[7] A sigla permanece a mesma, mas o órgão é denominado atualmente Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

[8] Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), órgão do Inep criado em 1955, por Anísio Teixeira, no interior do qual passou a funcionar a Caldeme.

[9] Até 15 de março de 1985, ocasião em que foi criado o Ministério da Cultura, mediante o Decreto n. 91.144 daquele ano, a sigla MEC designava Ministério da Educação e Cultura.

[10] Até o ano de 1997 foram contempladas com livros didáticos as disciplinas: Alfabetização, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Estudos Sociais, História e Geografia. Em 2011 o PNLD incluiu livros de Inglês e de Espanhol e, em 2016, a componente curricular Arte.

[11] O PNLEM foi criado através da Resolução CD FNDE n. 38, de 15 de outubro de 2003. No entanto, o atendimento aos estudantes se deu de forma gradativa: entre 2004 e 2006 foram contempladas as disciplinas Língua Portuguesa e Matemática; Biologia em 2007; História e Química em 2008; Física e Geografia em 2009; Inglês, Espanhol, Filosofia e Sociologia em 2015 e Arte em 2015. 

[12] Instituído pela Resolução CD FNDE n. 18, de 24 de abril de 2007, o PNLA foi absorvido, em 2009, por meio da Resolução CD FNDE n. 51, de 16 de setembro de 2009, pelo PNLD EJA. Com essa medida, o Programa ampliou o atendimento outrora restrito aos alfabetizandos do Programa Brasil Alfabetizado (PBA), passando a contemplar estudantes das escolas públicas de ensino fundamental e médio na modalidade EJA. Foi o primeiro programa do livro a incluir a disciplina Arte.

[13] Instituído pela Resolução n. 40, de 26 de julho de 2011, o PNLD Campo distribuiu em suas duas edições (2013 e 2016), livros consumíveis de Alfabetização Matemática, Letramento e Alfabetização, Língua portuguesa, Matemática, Ciências, História e Geografia. O Programa se destina a atender as especificidades de estudantes do primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental de escolas públicas da área rural, seriadas e multisseriada.

[14] Consiste na impressão do código Braille de forma justaposta à impressão do mesmo texto utilizando o alfabeto convencional, de modo a possibilitar a leitura paralela por pessoas com deficiência visual (cegueira e/ou baixa visão) e por videntes.

[15] Em Português: Centro de Tecnologia Especial Aplicada (CAST).